quinta-feira, 5 de novembro de 2015

La Vie en Rose

Se estivesse viva, Édith Piaf completaria cem anos em dezembro de 2015. A vida da cantora francesa foi marcada por mágoas e sonhos perdidos, mas ainda assim ela deixou uma mensagem para o mundo através de seu maior sucesso, a música La Vie en Rose. De forma visceral, la môme cantou sobre como um singelo abraço e breves palavras de seu amado faziam com que ela visse sua tão sofrida vida em cor-de-rosa – e aí brotava em seu coração a esperança de que tudo ficaria melhor. 

Acontece que o rosa sofre. Tem gente que passa longe dele a vida inteira. As crianças aprendem cedo que “é cor de menina”, e a publicidade obviamente fomenta isso colorindo vestidinhos, sapatinhos e fogõezinhos de brinquedo com essa cor segregada por uma sociedade cheia de normas. Quando o gênero, a sexualidade ou até mesmo os objetivos de vida de uma pessoa não são iguais aos de quem dita as regras, o rosa lhe é atribuído como se fosse uma marcação a ferro quente, para deixar claro que tem gente que vale menos do que outros nesse mundo. Mas, mesmo com os ataques dos chefes dessa sociedade de “machos dominantes”, as vozes dissonantes gritam cada vez mais alto – e elas gritam por um mundo cor-de-rosa. Gritam por um mundo no qual a diversidade deve ser apreciada. Essas vozes entendem que o rosa-choque, rosa-chá, magenta, salmão, cereja, coral, fúcsia e muitos outros tons têm um destino maior do que estarem presentes apenas em catálogos da Pantone e em coleções de batons para a primavera.

Infelizmente, para Piaf, o rosa acabou desaparecendo. Aos  47 anos, ela morreu doente, deprimida e, o pior de tudo, descolorida. Mas sua voz, entonando uma singela e intimista busca pela felicidade, ecoa nos corações das pessoas, até aquelas que não entendem francês. Em cada carícia, em cada beijo, em cada ato de amor ao próximo, brilha uma aura em tons de framboesa. Claro, é lógico que nossa vida precisa de todas as cores do espectro. O vermelho do sangue, o azul do céu, o verde das folhas, o marrom dos troncos e do mar de Tramandaí. O rosa, contudo, é subjetivo. É a cor que nasce dentro da gente, e só ultrapassa a barreira dos nossos corpos quando entendemos a importância de irradiá-la.

Tomara que mais pessoas possam ter a oportunidade de ver la vie en rose. É esse o único caminho para um mundo mais justo, mais bonito, mais brilhante. É esse o único caminho para le monde en rose.



sábado, 9 de maio de 2015

Jessica Lange em São Paulo - A saga de um fã apaixonado

Quando Jessica Lange veio ao Brasil em fevereiro, fui para São Paulo conhecê-la. Esse relato abaixo foi publicado em três partes no Série Maníacos, site que escrevo. Aqui, publico na íntegra. Boa leitura.


1. Introdução
Antes de qualquer coisa, preciso dizer o óbvio: sou fã da Jessica Lange. Fã mesmo, fã hard. Sempre tive um carinho grande por ela, principalmente depois que descobri, lá pelo começo da minha adolescência, que ela ganhou o Oscar na edição que premiou filmes lançados no ano do meu nascimento. Me tornei fã mesmo, dedicado, a partir de 2009, quando ela venceu o Emmy de Melhor Atriz em Minissérie ou Telefilme, interpretando a lendária Edith “Big Edie” Bouvier em Grey Gardens, ótimo projeto da HBO.
Qual não foi a minha surpresa ao saber que Jessica havia entrado para o elenco de uma série nova do Ryan Murphy para o canal FX? Essa American Horror Story me conquistou logo que eu soube disso, bem antes do lançamento. A série estreou, e no fim do primeiro episódio eu pensei comigo mesmo que, com a interpretação da amargurada Constance Langdon, Jessica Lange seria a nova rainha da televisão.


Dali em diante, 2012 se mostrou um ano recompensador para mim, pois Meryl ganhou o terceiro Oscar, e eu gritei e chorei feito um doido, e Jessica ganhou seu quinto Globo de Ouro, segundo Emmy e primeiro Screen Actors Guild Awards. E, em outubro daquele ano, dei início à minha vida real de sériemaníaco quando American Horror Story: Asylum estreou. Jessica interpretava sister Jude, que comandava com mãos de ferro o hospício Briarcliff.


De imediato a segunda temporada de AHS me conquistou, e, somada à minha paixão por Jessica, veio a vontade de ler tudo que encontrava sobre a série. Comecei a acompanhar os textos do Henrique Haddefinir, sempre tão profundos e complexos, e me tornei leitor assíduo do Série Maníacos. Quando vi que tinha vaga para entrar para a equipe, me joguei de cabeça e, dois anos depois, aqui estou.

2. “Jessica Lange virá ao Brasil em fevereiro”
Pulemos para outubro de 2014, dois anos depois da estreia de Asylum. Meus amigos Will e Luciano dariam uma festa de Halloween (ou, como eu chamava, HalloWill), e eu precisava de uma fantasia. Como não me fantasio de qualquer porcaria, honrei uma das melhores personagens em séries de terror: sister Jude. Franja loura, crucifixo, roupa sensual por baixo e maquiagem para marcar meus ossos no rosto de modo que eu ficasse parecido com Jessica Lange.


Com fotos publicadas no Facebook, fui recebido no trabalho com aclamação na segunda-feira após a festa. De acordo com meus colegas, eu era a melhor freira que já tinham visto. Perguntavam o porquê da franjinha, e eu explicava que “era o personagem da Jessica Lange numa série chamada American Horror Story”. Fui mais elogiado ainda. E, embalado por esses comentários, comecei a ler um post interessantíssimo do Papel Pop enviado por um amigo que se lembrou de mim. O texto, Um tributo para Jessica Lange, a rainha suprema da TV e do cinema, apresentava curiosidades sobre a carreira de Jessica para um público que, em maioria, conhecia apenas seu trabalho em American Horror Story. Não havia nenhuma grande novidade no post pra mim, até chegar nesse parágrafo: “O que?! Nossa suprema é fotógrafa?! Isso mesmo. Há 20 anos atrás, seu até então marido Sam Shepard lhe deu uma câmera Leica de presente e a atriz amou! Ela começou a fazer fotos de seus filhos, família e lugares que visitou, tudo em preto e branco. Em 2008 ela lançou o livro “50 Photographs”, uma coletânea com 15 anos de fotografia. Melhor parte: Tudo isso poderá ser visto em breve! Jessica Lange vem ao Brasil em fevereiro de 2015. Ela trará a exposição ‘Unseen’ ao Museu de Imagem e Som de São Paulo. Serão 135 fotografias da atriz, boa parte delas durante visitas ao México, Finlândia, Etiópia e Rússia”. Fiquei em choque. Falei para meus chefes na hora que, em fevereiro de 2015, eu veria Jessica Lange em São Paulo. Não tinha a mínima ideia de como iria, onde ficaria, se teria dinheiro. Mas essa oportunidade eu não deixaria escapar.
Lá por janeiro anunciaram que ela viria para a abertura da exposição em um evento apenas para convidados. Isso não diminuiu em nada meu ímpeto de ir, tanto que entrei em contato com amigos paulistanos que poderiam ter conhecidos dentro do MIS, e de alguma forma pudessem me colocar lá dentro. No fim do mesmo mês, a programação definitiva foi anunciada: seria um bate-papo com o público no dia 10 de fevereiro. Hora de comprar a passagem, mesmo pagando o dobro do preço que pagaria se tivesse comprado com um mês de antecedência. Tive que explicar para meu planejamento financeiro e para a minha mãe que não tinha culpa sobre a data certa da vinda de Jessica ser divulgada tão tarde, e, apesar de não esconderem o contragosto, os dois me ajudaram nessa empreitada. Voo da Azul saindo 11h para Congonhas no dia 06/02, volta às 14h do dia 11/02 para Porto Alegre. Lá se foram R$ 450 reais, doloridos ao servirem como investimento na realização de um sonho incerto, mas necessário. O sonho era incerto porque o MIS abriu 50 vagas para quem mandasse um minicurrículo mostrando o porquê que a pessoa merecia garantir uma entrada sem precisar chegar cedo na fila. Eu só consegui mandar o currículo horas depois do prazo, porque estava sem internet e cuidando de uma insolação violenta. Fiz um texto muito legal, explicando meu problema de conexão e comentando que estava indo de Porto Alegre só para o evento. Não colou. Então, amigos, seria na cara e na coragem.

3. Contagem regressiva
Passagem comprada, tudo acertado com o meu primo Rodrigo para ficar no apartamento que ele divide com a namorada, Martina, em São Paulo. Cheguei sexta-feira (6), deixei minha mala no apartamento dele e saí para passear. Eu teria quatro dias inteiros antes do evento para passear, então preenchi todas as horas possíveis com planos para tentar tirar meu pensamento de Jessica. Fui ao MASP, Parque Trianon, Itaú Cultural, Memorial da América Latina, Edifício Copan, carnaval de rua na praça Roosevelt, pontos de táxi na avenida Angélica, 25 de Março, Liberdade, visitar as inimigas lá no Instituto Butantan. E, nesses dias antes do evento, todas as noites fiz uma caminhada pela supreme das avenidas, a Paulista, ouvindo Life on Mars, Gods and Monsters, Heroes, The Name Game, September Song, We Belong Together... Era uma dose diária de ansiedade, mas que servia para manter meu furor aceso – não que precisasse ouvir Jessica cantando para me deixar on fire, mas por que não?


Enfim, me diverti demais nesses dias, mas quando chegou a noite de segunda-feira eu sabia que precisava me dedicar ao máximo ao motivo maior da viagem. Antes de me acomodar, deixei roupas, documentos, dinheiro e o livro 50 Photographs separadinhos. Só não consegui domar meu lado fã, o que me levou a deitar às 22h e conseguir dormir quase 1h. Afinal, eu sabia que acordaria em um dia surreal.

4. É hoje!
4h20 da manhã: toca o despertador. “Só mais cinco minutinhos”, que no fim foram uns vinte. Quando acordei de vez, me sentindo o rei da inconsequência, olhei para a janela entreaberta e pensei “é hoje”. Vesti as calças, meias, tênis. Ia para a fila com a camiseta que usei como pijama, e lá trocaria por uma limpa e bonita. Na sacola de tecido estavam o livro, uma caneta, uma revista, balas e uma caixinha de barras de cereal. Comi um sanduíche, tomei água e saí para caçar um táxi na Paulista. Sempre movimentada, a avenida é o máximo no fim da madrugada. As banquinhas de café da manhã na rua, pessoas indo para o trabalho, skatistas. Achei um ponto de táxi perto do Itaú Cultural, entrei no carro e disse “Jardim Europa, no Museu da Imagem e do Som. Não lembro mais a rua, desculpa”. O motorista sabia, e lá fomos eu e ele conversando.
Foi um percurso relativamente longo. Passamos o Ibirapuera e entramos nas ruas tortuosas e arborizadas dos Jardins, área nobre paulistana que eu só conhecia de nome, e de saber que a Marta Suplicy mora por lá. Achei curioso como é um contraponto da ideia que a cidade de São Paulo nos passa, porque o Jardim Europa é um bairro surrealmente escuro. Não tinha um poste de luz nas ruas, e por isso foi engraçado quando chegamos à iluminada avenida Europa. Paguei os trinta reais ao taxista e desci.

5. Avenida Europa, 158
Era seis e alguns minutos da madrugada, e, como eu disse e volto a ressaltar, ainda estava tudo escuro. Caminhei da esquina até a entrada do museu, e não tinha uma alma por ali. Logo em seguida uma senhora desceu na parada de ônibus e passou por mim, e aí perguntei para ela se havia um bar ou algo assim ali por perto, e fui tagarelando e dizendo que a distribuição dos ingressos era só às 17h, e eu estava com sede, etc. Ela me indicou uma banca de revista naquela mesma quadra, e um posto de gasolina numa esquina três ruas acima. E, cordialmente, me desejou boa sorte. Passei na banca e comprei uma Folha de São Paulo só pra ver se a exposição e a vinda da Jessica seriam noticiadas, e qual o espaço dado a isso no jornal. Depois fui até o posto, e lá comprei uns chocolates, um refrigerante e uma keep cooler (afinal, o dia seria longo... e, mesmo na falta do meu amado Martini, já era bom ir começando os trabalhos).

De volta ao MIS, vi um rapaz e uma mulher vestidos de preto sentados num banquinho dentro do pátio do museu. Como a corrente ainda estava posta na entrada, pensei que trabalhavam por lá. Então, sentei na calçada e comecei a dar uma lida sobre novidades na captação de água no sistema Cantareira. Não muito tempo depois, os dois de preto vieram falar comigo. “Você está na fila pra ver a Jessica Lange?”. “Sim, estou”. “A gente também, o segurança nos falou para ficar aqui dentro. Vem com a gente”. Então eu não era o primeiro, era o terceiro. O que, no fim da história, não mudaria em nada as minhas chances de conseguir a senha.
A moça se chamava Marina, 24 anos, dona da primeira agência de modelos alternativos do Brasil. O menino era o Bruno, 17 anos, que ajuda a mãe numa oficina de costura em Guarulhos. E, junto com esse estudante de jornalismo gaúcho de 20 anos, éramos os três primeiros na fila. E lá ficamos apenas nós três, conversando sobre Jessica. Logo chegaram mais pessoas, com as quais também fizemos amizade: o Hermano, o Paulo, a Natália e a Fernanda. Como eu, Marina e Bruno ocupávamos o único banco que não estava molhado, espalhei folhas do jornal no banco ao lado para que os quatro não ficassem de pé. Já havia localizado e guardado a nota sobre a exposição na Ilustrada, uma nota discretíssima de uma frase só. Achei maravilhoso.
O tempo passou, o dia amanheceu e foi chegando mais gente na fila. Alguns com camisetas de American Horror Story, outros que pareciam ter saído da Miss Robichaux's Academy for Exceptional Young Ladies. Quando o relógio marcou 7h, comemoramos: daqui a dez horas distribuirão as senhas.




6. Ser fã é padecer sob o sol
Em torno das 9h, fomos avisados que deveríamos sair do espaço coberto dentro da área do museu por motivo de regras da casa, e tivemos que formar fila na calçada. E, como é de se esperar numa situação assim, o sol brilhou forte e nos cozinhou enquanto estávamos sentados em tijolos ou sobre as folhas da Folha. Conversávamos para matar o tempo e tentar esquecer o calor, e assim debatemos RuPaul’s Drag Race, Once Upon a Time, Revenge. Além de, claro, prestarmos atenção nas pessoas da rua como bons shady bitches que éramos. Passou um grupo de senhoras: “chegou o conselho de bruxas”. Apareceu uma moça loira de terninho e batom vermelho: “a Cyndi Lauper veio, que ótimo”. Uma Kombi parou na calçada: “a Jessica vai sair ali de dentro”. Ainda debochávamos das pessoas que paravam na frente do Bruno como se nada tivesse acontecendo. “Precisa de ajuda?”, perguntávamos. “Aqui é a fila pra tirar a senha?”. “Aqui é o começo, o fim é lá pra trás”. Porra, não era óbvio que o começo da fila era na frente do museu, e o fim por consequência era na outra ponta?
Lá pelas 11h, uma moça muito bonita e chiquérrima com um vestido laranja e um colar prateado, veio nos perguntar ligeiramente incrédula: “essa fila é para a exposição da Jessica Lange?”. Obviamente assentimos, e ela, pasma, diz que “gente, vocês são fan-tás-ti-cos”. O Bruno tinha dado uma saída para procurar um mercadinho e comprar comida e bebida, e voltou muito tempo depois porque na área praticamente não tinha estabelecimento comercial. Já era meio dia, e de almoço o Bruno comia um Cheetos, a Marina tomava uma Coca zero e eu comia Kit Kat e umas bolachas que o Paulo tinha trazido. Tudo isso, obviamente, na chapa quente que era a calçada da avenida Europa.


7. O conforto de um piso de concreto
Era 13h quando a moça de laranja retornou, duas horas depois do nosso último encontro. Sim, foi liberado, poderíamos ir para a parte coberta, ou seja, para a sombra, para a pedra geladinha, para poder deitar no chão e ir ao banheiro numa boa. Não tinha do que reclamar. Aproveitei para dar uma olhada no restinho que sobrou da exposição sobre o Castelo Rá-Tim-Bum, um ou outro quadro de personagens que, em grande maioria, eu realmente não me lembrava da existência.
Em um momento estranhamente confortante, o pessoal do Museu colocou uma placa na nossa frente, marcando o começo da fila. Logo, muita gente começou a vir para tirar fotos ao lado da placa.



Lá pelas 14h, chegou um pessoal da Folha de São Paulo. E, obviamente, eles vieram até o começo da fila para saber quem éramos e o que nos levou a estar lá tão cedo. A Marina foi entrevistada, o Bruno foi entrevistado, e aí foi a minha vez. Quando falei que era de Porto Alegre, a repórter me olhou fascinada. “Você veio só para ver a Jessica?” “Sim”. Falei pra ela sobre como sou admirador do trabalho dela há anos,  especialmente quando descobri que, no Oscar que premiou os filmes de 1994, ano do meu nascimento, Jessica foi escolhida a melhor atriz. A repórter não sabia ao certo a idade dela, e eu falei que eram 65 anos, porque ela nasceu em 20 de abril de 1949. “Você realmente sabe tudo sobre ela!”. Não sei tudo, mas não tem como negar que sou muito, muito fã. E a matéria foi prestigiosa comigo. Para quem quiser ver: “Jessica Lange faz fãs de American Horror Story amanhecerem no MIS”.


8. O sonho é realidade
Estávamos todos lá sentados, tomando nossas águas, conversando numa boa, sem esperar muitas novidades tão cedo. Em torno das 15h30, para a nossa surpresa, aparece um funcionário do museu com duas cartelas de adesivos roxos. Cada um de nós, a partir do primeiro da fila, recebeu os adesivos que garantiriam nossa entrada no evento. Todos nos olhamos em êxtase: conseguimos!
Obviamente, quando os adesivos acabaram antes de chegar na metade da fila, houve polêmica. O Bruno, cara de pau ao máximo, foi lá super diva e com o cobiçado adesivo roxo no peito para ver a confusão. Por um lado eu fiquei com pena de quem não conseguiu, mas por outro pensei que eu fiz por merecer aquele terceiro adesivo distribuído – todos nós, lá no começo da fila, merecemos pelo nosso esforço. A sensação de conquista é sempre boa.


9. Novos territórios
Era 17h quando um pessoal veio nos encaminhar para um novo lugar para fazermos fila, quase na entrada do auditório. O motivo não foi explicitado, mas não gostamos muito do novo lugar. Era complicado para sentar no chão confortavelmente, ir no banheiro, tomar água e, para quem precisasse, fumar. Só que, como estávamos mais perto ainda do local do bate-papo, se espalhou a sensação de que faltava bem pouco tempo, o que é inegavelmente bom.
Lá, eu e o Bruno falamos muita bobagem para a diversão do staff do Museu que “nos cuidava” na porta. Extremamente prestativas, uma moça chamada Daniele e outra que não lembro o nome nos deram bastante atenção.
Foi no começo dessa nova fila que eu, Bruno, Marina e mais alguns amigos demos entrevista para a Juliene, repórter da Veja São Paulo. Não tem como negar que dar entrevistas foi um ótimo passatempo para nós. Apesar de estar bastante equivocada na frase “[...] pouco interessados na mostra da diva, viram no evento a única oportunidade de vê-la ao vivo.”, a matéria trouxe ótimas citações do Bruno, da Marina e minha. Deem uma olhada aqui: “Exposição de Jessica Lange reúne fãs de 'American Horror Story'”.
Logo chegou mais alguém para ficar no começo da fila, o Gabriel. Jornalista gente finíssima, ficou lá conversando com a gente. Ele não ia nos entrevistar, e sim entrar no evento. Não havia problema nenhum em ele estar ali com a gente, pois de qualquer modo a imprensa estava com a entrada livre, ou seja, ele só entraria por um lugar diferente de seus colegas. Foi ele, inclusive, que me apelidou de “Gaúcho”, algo que adorei, pois ressaltou ainda mais o fato de eu ter vindo de um lugar distante apenas para aquele evento.


10. Polêmica
Certo momento, um pessoal veio delimitar a nossa fila, para formar outra ao nosso lado. Obviamente perguntamos que história era aquela, e ficamos sabendo que era o pessoal que tinha conseguido a entrada pelo envio de currículos. Não gostamos nada daquilo, afinal, eles não haviam garantido uma entrada antecipada, e sim apenas a entrada em si. E nós, na fila desde as 6h da manhã, não poderíamos ser prejudicados por isso. Não houve problemas entre nós da fila do “povão” e os outros: eles mesmos questionaram a falta de informações sobre como seriam as circunstâncias da entrega de suas senhas. Com uma polêmica criada ali, apareceu o diretor do MIS, o cineasta André Sturm, para ouvir as nossas queixas.
Indo na contramão do que haviam nos pedido, ele disse que “obviamente” quem chegou de madrugada para o evento deveria entrar primeiro, e quem tinha a entrada certa por causa dos currículos deveria estar na fila como todo mundo. Enquanto ele ouvia o que todos tinham para dizer, pedindo desculpas em nome do MIS pela confusão a respeito de como funcionaria a entrada (o que, mesmo que de coração, não tinha como representar grande coisa naquela situação), uma moça afirmou que o que estava acontecendo era uma falta de respeito com eles. Sturm, começando visivelmente a se irritar, perguntou “de quem? Quem está faltando com o respeito?”. “O senhor”, disse ela. Aí, minha gente, foi um Jessica Lange nos acuda. Exaltado, Sturm disse que estava conversando com a gente de forma pacífica e na melhor das intenções para solucionar aquele problema, e que ela estava apelando para criar confusão e evitar um acordo. Ele disse que poderia mandá-la para o fim da fila se ela estava descontente, inclusive. A partir desse momento eu fiquei um pouco perdido, porque eu e a Marina nos olhávamos com uma cara de choque, mas ouvi a moça dizendo que chamaria a polícia se fosse proibida de entrar, e Sturm falou alto “chama, chama!”. No fim essa moça acabou indo para o fim da fila e a polícia não apareceu. A solução partiu de nós mesmos: entraríamos juntos. Três ou quatro da fila comum, um ou dois do pessoal da entrada garantida. O Gabriel entraria também como um dos primeiros, mas, como já disse, isso não era problema, pois ele era da imprensa.


11. De frente ao palco
Era 18h40 quando uma das funcionárias veio nos avisar, em alto e bom som: “por favor, todos com identidade e senha em mãos”. Todos nós nos olhamos, vibrando. Tirei a identidade do bolso e a senha de dentro do celular, e a porta foi aberta. Entrou o Gabriel, a Marina, o Bruno, o primeiro da fila dos currículos e eu. A identidade era para pegar o fone de ouvido que teria a tradução simultânea, então eu passei direto. Entreguei a senha para a pessoa na porta do auditório e entrei.
Como as poltronas da frente estavam reservadas para convidados do MIS, sentamos no centro da segunda fileira. Gabriel, Marina, Bruno, eu. Ao meu lado, uma moça muito simpática chamada Débora. Agora não tinha o que eu pudesse fazer para que algo desse errado: chegar cedo na fila foi uma atitude esperta, eu já estava numa ótima localização... Agora não era mais comigo o assunto. Agora, era só esperar Jessica Lange. E só me restava contar o tempo.


7 minutos, 5 minutos, 1 minuto... Era 19h03 e o evento realmente começou.


12. É agora. É AGORA!
André Sturm veio ao palco e pediu para que houvesse certo padrão de respeito, bom senso e decoro – ou seja, os fãs que provavelmente dariam gritos estridentes ao ver Jessica entenderam que o aplauso é o que vale mais. Entrou no palco o fotógrafo Iatã Canabrava, mediador do bate-papo. Um cinquentão com roupas modernas e meio baixinho, Canabrava simbolizava, para nós, o último obstáculo para até que enfim vermos Jessica. Em seguida, o diretor pega o microfone para introduzir a estrela da noite. Queria tanto lembrar o termo certo que ele usou para defini-la, mas sei que era algo como “única”, “incomparável”, algo assim. Ele anuncia, finalmente: “A (algum adjetivo)... JESSICA LANGE”. O nome fez a plateia explodir em aplausos, levantando de forma abrupta e olhando atentamente para a porta. Mas os aplausos diminuíram de ritmo e ela não apareceu naquele momento.


Ela apareceu cinco segundos depois.


13. Jessica Lange
Meu corpo ficou dominado por um sentimento que não conhecia, e que me deixou bambo. Eu estava de frente para Jessica Lange, duas vezes vencedora do Oscar, premiada com cinco Globos de Ouro, três Emmy e um Screen Actors Guild, que entrava no palco rindo e acenando. A intérprete de Frances Farmer, Patsy Cline, Angelique, Big Edie, Carly Marshall, Constance Langdon, sister Jude, Fiona Goode, Elsa Mars... ali, tão próxima, ao mesmo tempo humana e divina. Eu estava vivendo o melhor sonho da minha vida. Foi um momento fenomenal, como dá pra ver nesse frame que meu amigo me encontrou vendo o Jornal da Globo. Aquela pessoa cabeçuda aplaudindo efusivamente no canto esquerdo sou eu.


Nós na plateia quadruplicamos a intensidade dos aplausos. E os gritos detestáveis, mas compreensíveis, obviamente aconteceram. Ela acena para nós, sorrindo e nos ofuscando a apenas uns metros de distância! E, ao se sentar, ela fez um movimento com os dedos médio e indicador, rindo. O Bruno, ao meu lado, agarrou meu braço e disse “ela fez aquilo pra gente!”. Claro, é muito fácil um artista parecer que olha só pra ti enquanto olha para dez pessoas ao teu redor. Mas, levando em consideração que eu e a Marina estávamos com o livro dela nos braços, ela pode ter visto e reconhecido. Além do mais, não tinha ninguém na primeira fileira ainda, e não vi ninguém atrás de nós com o livro.
Iatã Canabrava esperou a plateia silenciar para pedir “só aplauso”. Então, aplaudimos efusivamente. Ele diz, então, que pediu “aplauso”, assim no singular, e diz que vai nos puxar para o aplauso coletivo. “Clap”. Essa foi apenas a primeira parte das várias bolas-fora do mediador. Ainda bem que Jessica ainda não tinha colocado os fones de ouvido para ouvir a tradução, porque senão teria esboçado uma reação de “what the fuck?” menos discreta.
Enquanto Canabrava introduzia o evento, Jessica tentava colocar os fones de ouvido para ouvir a tradução. Ela tentou por um tempo, e deu uma gargalhada, dizendo algo como “I need some help here”. Com a help concedida e a plateia ansiosa, começou o bate-papo.


14. Bate-papo
Lendo as perguntas em um papel, Canabrava comenta que a fotografia muitas vezes é uma representação de crenças e ideais, e, hoje, se mostra como a lembrança do mundo que desejávamos antigamente. Mudando um pouco esse pensamento e trazendo a fotografia para o presente, ele pergunta: “Você tem interesse em fotografar o mundo dos fãs? O mundo da televisão... o mundo que está tão próximo ao seu?". Ela ouve, hesita e responde “Not so much!”, para a gargalhada geral.
Ela explica que, como fotógrafa, é atraída muito mais pelo singelo e pelo corriqueiro do que pelos bastidores do trabalho. Portanto, ela prefere trabalhar com o que não está tão próximo dela como celebridade.
Jessica emenda que “o que nos atrai em uma imagem já feita é o que nós gostaríamos de fazer”. E, vendo fotografias de Cartier-Bresson, Walker Evans e outros na parede de casa, ela tinha o primeiro grande impulso para fotografar e se espelhar. Jessica conta que, em uma visita a uma galeria, ela e uma amiga fotógrafa fizeram um teste: escolher, dentre toda a exposição, qual fotografia elas comprariam. Não recordo qual a amiga escolheu, mas a favorita de Jessica era a de um casal sob as luzes de uma rua. A amiga de Jessica, então, disse que elas escolheram as fotos que mais gostariam de ter feito elas mesmas. “Eu sou atraída por todos esses momentos, e eles não são necessariamente momentos modernos, não são necessariamente momentos contemporâneos, não são os momentos que eu vivencio quando vou ao supermercado ou quando vou ao set, ou qualquer coisa assim. Isso não me interessa tanto. Não tem o romantismo, não tem o mistério, não tem a cumplicidade dos momentos, dos gestos, da intimidade que me interessa como ser humano e, por consequência, me interessa como fotógrafa”. Resposta aplaudidíssima por nós.
Em seguida, Canabrava traz à conversa o novo livro de Jessica, It’s About a Little Bird, uma história para crianças. Ele fala da beleza das ilustrações do livro, e pergunta como ele foi idealizado. Jessica responde que, em sua família, há a tradição de trocar presentes de Natal feitos por eles mesmos. Ela geralmente presenteava fotografias, mas naquele ano decidiu que faria um livro para as netas. E, em certo dia, ela acordou e a história “se escreveu sozinha” em sua mente. Então, na medida em que transcrevia para o papel, imaginava as imagens que acompanhariam o texto. Como sempre foi fascinada por diversos tipos de fotografia, Jessica escolheu um processo antigo de colorir fotos em preto e branco para ilustrar o livro – fotos das próprias netas.


Um ano depois, uma amiga de Jessica viu o livro e perguntou por que ela não publicava o livro. Ela diz que se deixou levar, e “now it’s a children’s book!”. Em seguida, ela completa: “Eu estou indo para trás na tecnologia ao invés de ir para a frente, porque eu sei que se pode fazer isso tudo no Photoshop, e fazer o que você quiser, mas eu ainda estou interessada no processo antigo”.
Canabrava puxa a terceira pergunta. “Avessa à fotografia digital e a todo tipo de selfie...”, e Jessica já começa a rir. “E vocês todos pensando em selfie”, ele diz para nós. Jessica olha para a parte onde eu estava, e eu disse um no mudo e fiz um movimento negativo com o dedo. Ela sorriu, e eu me arrepiei. Como você vê a popularização da fotografia pelo Instagram? Jessica, você tem Instagram?”. A nossa reação na plateia foi impagável. Não é segredo que Jessica é uma pessoa que mantém a vida pessoal em privado, e é avessa a redes sociais. Ele completa, talvez para corrigir a visível trapalhada: “Como você vê esse movimento de se estar fotografando tudo o tempo todo?”. Ela, com um tom leve, diz: “Me parece que nós estamos em algo que é quase patológico, quase sociológico. Essa ideia de se registrar em cada segundo do dia. Isso não faz absolutamente nenhum sentido para mim”. Ela ressalta que começou a fotografar os filhos crescendo, e que queria retratos sem pose, e sim fotos de momentos corriqueiros – e em preto e branco. E, logicamente, diz que gosta da ideia de ter um registro visual da vida. Contudo, ela ressalta: “Essa ideia de que cada momento precisa ser gravado… Quero dizer, quem se importa tanto com você? Sério, quem se importa tanto que quer ver todos os momentos do teu dia? Se há alguém que se importa tanto assim, Deus te abençoe!”. Não havia uma pessoa naquele auditório que não estivesse gargalhando.
Seguindo no mesmo raciocínio, ela diz: “Vou dar um exemplo, ok? Eu estava sentada em um lindo parque daqui outro dia, esperando um amigo que estava fazendo um telefonema muito importante. Eu estava sentada lá, e um jovem casal chegou. Eles estavam apaixonados, eles deviam ter apenas dezoito, dezenove anos de idade. Eles sentaram e eu pensei – e eu tinha a minha câmera comigo – ‘oh, ótimo, eu vou tirar uma linda fotografia desses dois jovens anjos se beijando ou se abraçando ou algo assim’. Havia algo incrivelmente romântico, sedutor, com o verde e a luz que vinha... Eles sentaram, e os dois pegaram seus iPhones. Primeiro eles fizeram isto (e ela faz um movimento de deslizar na tela de um celular) por uns dez minutos. E então eles fizeram isto (aí ela finge que está tirando selfies), tirando fotos deles mesmos. Não teve um abraço, não teve um beijo, e eu pensei ‘oh, os tempos mudaram!’. Eu não sei se mudaram para melhor”.
A quarta questão era mais um desafio. Canabrava diz que, segundo a própria Jessica, o fotógrafo não deveria pensar em si, mas sim no que acontece ao redor. Contudo, o trabalho de Jessica é bastante autoral. A partir disso, ele quis saber se havia um paradoxo nisso. Ela responde que não necessariamente, porque o fotógrafo sempre trabalha de acordo com a vivência e a forma com a qual percebe a vida. Jessica diz que uma outra amiga fotógrafa chamada Brigitte Lacombe vê no trabalho dela a influência da solidão que sempre a acompanha. “A verdade é que, sim, é bem pessoal, é sobre a sua vida o fotografar. Tem que ser sobre a sua vida porque, você sabe, não seria íntimo, não seria pessoa, não seria único para você”. Nós aplaudimos bastante, e ela completa, para nosso deleite: “Sex, drugs and rock ‘n’ roll!”.
Hora das perguntas da plateia. Apenas três, para a chateação geral – afinal, dentre as mais de 150 pessoas no auditório, sem dúvida havia melhores perguntas do que as feitas por Canabrava. A primeira e interessantíssima questão era sobre se e como as carreiras de atriz e fotógrafa se mesclavam, e como uma influenciava na outra. Ela diz que usou muitos registros visuais para compor personagens não fictícios em seus trabalhos, como a atriz Frances Farmer, a cantora Patsy Cline e a excêntrica socialite Edith “Big Edie” Bouvier Beale. E, para compor um personagem fictício, ela procura imagens que são relacionadas à caracterização e ao roteiro. Ela cita Elsa Mars, a cantora alemã dona do freakshow na quarta temporada de American Horror Story (e a plateia fica em êxtase), e como pesquisou sobre artistas alemãs dos anos 20, 30 e 40 na antiga República de Weimar.
A segunda pergunta era relacionada a um dos assuntos mais debatidos pelos fãs na fila: Jessica fotografando na 25 de Março. Canabrava pergunta se ela tem interesse em fazer um livro com as fotos tiradas em São Paulo, um novo “So Photographs”. Eu e alguns poucos outros sopramos para ele que era “fifty, cinquenta!”. Ele, desconcertado, pôs a culpa na caligrafia de quem escreveu a pergunta. Ela responde que não sabe se as fotografias que tirou tinham ficado boas, e aí ressalta como uma curiosidade da profissão que, muitas vezes, a melhor fotografia é aquela que o fotógrafo não se lembra de ter feito.
A terceira pergunta da plateia eram duas em uma. Qual trabalho específico de outro fotógrafo ela considerava o mais bonito? Jessica responde que é a fotografia que viu na galeria com a amiga, em preto e branco, “extremamente francesa”. E, das fotografias dela, qual mais a marcou emocionalmente? Ressaltando que é muito difícil escolher apenas uma, diz que, em um dia excepcionalmente quente, ela viu um casal deitando, ou, em suas palavras, “caindo de forma sexy”,  na grama de um parque. Ela recosta a cabeça na mão dele, tudo com um ar sensual por causa do calor. E, logo atrás do casal, uma placa “divertida”. Então, me dá um estalo: essa foto é uma das minhas favoritas no livro. O casal deitado na grama, realmente de forma sensual, e uma placa dizendo Cherry Chill ao fundo. Num instante a encontrei na página 38, abri o livro e deixei a fotografia visível para o palco.


Ela conta sobre como o momento era rápido, diz que bateu várias fotos, uma atrás da outra. E, encerrando a explicação, diz “and I got one frame...”, aí ela olhou para a parte onde eu estava e, vendo a fotografia, deu uma risada. Ela apontou com o dedo e eu perguntei “this one?”, e ela diz “That was it! Yeah...”. Ali não foi uma interação passível de questionamento. Houve uma troca real naquele momento. Ela riu, talvez pelo meu lógico apreço pela obra ou pela agilidade de achar e mostrar, talvez pelo fato de a plateia realmente estar colaborando. O que importava pra mim é que eu já tinha uma história surreal como lembrança.
A outra fotografia era uma que Jessica tirou em um passeio com uma das netas, e a menina, inocente e corajosa, pegou uma pequena cobra com as mãos (eu suponho, ou ao menos espero, que tenha sido uma cobra morta). Essa, inclusive, é a fotografia que está no verso do folder da exposição.


Para encerrar o bate-papo, Canabrava fez duas perguntas que me fizeram sentir muita vergonha alheia. Ele quer saber qual foi o momento em que Jessica percebeu que queria seguir a carreira de fotógrafa. A plateia ficou insatisfeita, visto que, em primeiro lugar, uma pergunta assim deveria ser feita no começo do bate-papo, e, em segundo lugar, ela meio que já havia sido respondida anteriormente. Jessica explica, novamente, que começou a fotografar os filhos e netas como recordação, e, depois, a levar a câmera para as viagens que fazia.
Na segunda e última pergunta, Canabrava deixou no ar uma afirmação estranhíssima, falando que via no trabalho de Jessica uma mistura entre “sonho e mistério”, e pediu para ela falar sobre isso. Eu fiquei indignado, porque, se ele não sabia antes do bate-papo que a solidão é uma das maiores influências do trabalho dela, àquela altura já deveria saber. Jessica riu, desconcertada, e disse que não entendeu direito o que ele quis dizer. A emenda de Canabrava ficou pior que o soneto, então ela fez o que pôde para responder que talvez a aura de mistério seja pelo fato de ela normalmente fotografar à noite, e ser fascinada pela forma como as luzes se apresentam.
Após a pergunta ser respondida, André Sturm vem ao palco com um enorme buquê de flores para encerrar o bate-papo e agradecer a presença de Jessica. Todos nós estávamos vibrando e aplaudindo de pé. Ela, lisonjeada, nos diz: “You really were a great audience and I appreciate your attention very much. Thanks!”. E, acompanhada por Sturm e Canabrava, deixa o palco. E, com Jessica fora do palco, pensei: “essa é a noite mais incrível da minha vida”.


15. O sonho continua
O preço de estar bem na frente no bate-papo, obviamente, é sair por último do auditório. Fomos até a área que dava acesso à exposição, e lá ocorria um coquetel com espumante, vinho branco e amendoim. Não sou de dispensar bebida e comida de graça, mas só o que eu pensava era em ver Jessica novamente. Então, subimos eu, Gabriel e Marina atrás da turba ensandecida. Ao chegar no espaço, vejo uma mulher loira, belíssima e com inegável botox que me chama a atenção. Pergunto pro Gabriel: “aquela ali não é a Bruna Lombardi?”. Era. Alguns tiraram fotos com ela e o Carlos Alberto Riccelli, e Bruna não pareceu muito incomodada porque sabia que ali ela era como todos nós – claro, mesmo com os privilégios de ser Bruna Lombardi, todos nós estávamos lá para vermos Jessica.
Suponho que André Sturm subiu num banquinho, porque ele estava bem mais alto que eu, e explicou como ia rolar a volta de Jessica. Primeiro, ela viria por uma área central do andar, com uma cortina preta e toda uma mise-em-scène que me lembrou um pouco American Horror Story: Coven. Depois, ela iria posar ao lado das próprias fotografias. Como ela não tira fotos com fãs, ninguém seria estúpido o suficiente para pedir uma selfie, principalmente depois de ter visto o bate-papo. E lá estavam as pessoas que tinham conseguido ver o bate-papo e o pessoal que assistiu pelo telão, então dessa vez eu, Marina e Gabriel éramos os prejudicados ao invés de quem ficou no fim da fila. Mas todos merecem a chance de ser me na vida, né?


Jessica apareceu novamente, para mais um estouro de aplausos e gritos. Um minuto depois, precisamos abrir espaço para ela chegar à frente dos quadros. Contudo, só quem estava bem na frente conseguia enxergá-la. E eu, com meus 1m89cm de altura, via apenas relances. E era um empurra-empurra muito grande. Para vocês terem ideia, eu, novamente, com meus 1m89cm de altura e mais de 90kg, era arrastado no meio da multidão.


Em um primeiro momento, Jessica posou para os fãs. Extremamente solícita, ela sorriu, cumprimentou, se mostrou uma diva incrível. Depois, ela foi para outra parte da exposição, onde apenas jornalistas e o staff do museu poderiam passar. O Gabriel, com o crachá de imprensa, conseguiu acessar a área. Tem vezes que eu esqueço que nossa profissão é recompensadora... Ele, com o autógrafo em mãos, foi dar uma olhada na exposição.
Em seguida, funcionários vieram nos avisar que haveria sessão de autógrafos, e que precisávamos nos organizar em fila. Fiquei sabendo depois de muita gente, então fiquei quase no final da fila. Também fomos avisados que Jessica só autografaria o folder da exposição, ou, para quem tivesse, algum de seus livros. Eu abracei o 50 Photographs.
A fila demorou muito para andar, porque tinha um amontoado não organizado de gente na ponta, mas pelo menos fomos acompanhando e comentando as fotografias à medida que dávamos no máximo três passos por minuto. Depois que aquele grupo conseguiu seus autógrafos, tudo começou a fluir. Contudo, havia o receio de que, com quase 150 pessoas na fila naquele momento, ela cansasse e, por consequência, desistisse de continuar autografando. Mas Jessica, valente, não desistiu. Dessa vez, a contagem regressiva não era de minutos: era de pessoas. “Tem uns vinte na nossa frente”, “Agora tem dez”, “Cinco”, “É tu, Hermano, boa sorte!”. E, depois do Hermano, eu.


16. “On the cover? All right!
A moça disse que eu podia passar. Dois seguranças faziam um pequeno cerco para impedir que nos aproximássemos demais – um reflexo óbvio da turbulência do momento. E eu estava a menos de um metro dela. Alcancei o livro para o diretor do MIS, e ele o colocou sobre a mesa na frente dela. Jessica deu uma hesitada ao ver meu livro fechado, provavelmente por não saber em qual lugar autografar. Eu disse “on the cover!", e ela sorri e me responde "on the cover? All right!". Não tinha mais como ficar em dúvida sobre ela ao menos saber que eu existo, pois naquele momento Carlos Müller Villela e Jessica Lange haviam conversado. Eu estava realizado, mas não podia simplesmente esperar ela me dar o livro, eu dizer thank you e ela you’re welcome. Então eu falei "I showed you the cherry chill picture”. Ela, que já vinha olhando para mim quando comecei a falar, deu uma risada e, sorrindo, disse entretida "I know it! I remember! I know, thanks”.  Ela alcançou o livro até mim, mas como eu não podia passar do limite dos seguranças, o diretor do MIS me entregou. Em êxtase, agradeci e disse "you're amazing. you are the best, you’re really THE BEST". Ela riu e agradeceu, com um "oh, thank you really, thanks". Eu, com um aperto no peito, fui caminhando para a saída da área, sem tirar os olhos dela. Para meu espanto, ela continuava me olhando e sorrindo. Então eu sorri e acenei, abrindo a mão e movimentando os dedos. E ela sorriu mais ainda e acenou de volta da mesma maneira. Eu mandei um beijo, e ela riu. E mandou o beijo de volta. Ainda rindo um pouco, foi dar atenção para o fã que estava atrás de mim. E, saindo daquele grupo de gente e indo para onde meus amigos de fila estavam, entrei num torpor violento.

17. “Veni, vidi, vici”
Saí abraçado no livro e vejo Natália, Paulo e Fernanda amando seus autógrafos. Eu não sabia como proceder a partir daquele momento. Creio que minha pressão ficou instável, porque estava tremendo, meio mole, sem conseguir verbalizar um raciocínio de forma conexa. Ao meu lado, vi duas das funcionárias do MIS que estavam “cuidando” e conversando com a gente no começo da fila. Eu abracei as duas, enchi de beijos na bochecha. Cheguei até meus amigos, e comecei a admirar o autógrafo. Lindo, apaixonante. E com a tão especial marquinha azul da caneta falha.


Contamos nossos momentos com Jessica, trocamos contatos e me despedi deles, lamentando que tinha perdido o Hermano de vista. Desci com o Gabriel para encontrarmos o Bruno e a Marina, e, enquanto ele tinha ido conversar com um amigo, eu aproveitei para pegar uma merecida taça de vinho branco. A Marina estava na rua, e me contou sobre como o diretor do MIS a levou até Jessica para pegar autógrafo, e como elas conversaram e até trocaram aperto de mãos (óbvio que eu apertei a mão da Marina em seguida, né). Eu subiria até a Paulista com o Gabriel e o amigo dele, mas decidi ficar conversando mais com a Marina. Me despedi dele, sem dúvida uma baita companhia, e lá ficamos eu e a Marina tomando vinho e espumante, nos sentindo a metros do chão. Ela precisava ir para casa, e eu desejei a maior sorte do mundo para ela. Eu, ela e o Bruno nos conectamos muito bem, quase como amigos de longa data. E, inegavelmente, cada um de nós foi responsável por fazer o dia do outro o melhor das nossas vidas. Vai ver por isso que dizem que a amizade de fila é tão boa.
Sozinho pela primeira vez em quinze horas, peguei o táxi rumo ao apartamento do meu primo. Puxei papo com o taxista, que não tinha a mínima ideia de quem era Jessica Lange, e fomos conversando sobre como São Paulo consegue ser gigantesca e aconchegante ao mesmo tempo. Cheguei no Rodrigo, e ele e a Martina estavam no sofá assistindo Breaking Bad. “E aí, Carlos, como foi?” “Incrível. Incrível”. E aí fiquei uns quinze minutos na cozinha, olhando para o nada. O Rodrigo foi me dar boa noite, e eu conversei um pouco com a Martina sobre o evento. Ela não se surpreendeu muito quando falei sobre a polêmica entre a moça na fila e o diretor do MIS, porque aparentemente ele é conhecido por não ter o temperamento fácil. Eu não consegui contar muito sobre o bate-papo e a sessão de autógrafos, simplesmente porque começava a tremer só de pensar. As palavras me faltavam, e só conseguia falar adjetivos como incrível, surreal, inacreditável, onírico. Ela foi dormir, e eu tomei banho e me deitei. Após esse dia tão intenso e, por incrível que pareça, nem um pouco exaustivo, custei a dormir.


18. The morning after
Acordei sem sono lá pelas 8h. Era meu último dia em São Paulo, e a minha missão teve êxito muito maior do que esperado. Então, ainda tremendo muito só de me lembrar do dia anterior, saí para um último passeio na cidade. Fui conhecer a Galeria do Rock basicamente para comprar uma pop figure da Fiona Goode, mas já tinha esgotado. Lamentei, mas, para quem já tinha visto Jessica Lange em carne, osso e brilho, a boneca não era tão necessária assim.
Retornei ao apartamento, terminei de arrumar a mala com muita dificuldade (de tanta quinquilharia que comprei na 25 de Março e na Liberdade), me despedi do Rodrigo e da Martina, os melhores anfitriões possíveis, e saí. Peguei o táxi, cheguei em Congonhas, fiz check-in, despachei a mala e fui esperar o embarque no portão 1. Na hora do embarque me atrapalhei porque confundi a passagem com aquele papel que nos dão quando a gente despacha a mala. Pedi desculpa para a moça na hora de mostrar a passagem, dizendo que a classe C ainda não está habituada com esse procedimento. Ela riu e disse “querido, classe C já tá habituada sim. Classe C é nós!”. Esse “classe C é nós” me sacudiu, e, quando sentei no meu lugar (poltrona 30A, a última do avião), olhei pela janela e fiquei emocionado. Era a minha segunda vez em São Paulo, e eu ainda não havia superado o meu deslumbramento. Sempre sonhei alto, e a terra da garoa me mostrava novamente que sonhos viram realidade. E o sonho que realizei nessa segunda viagem não era um sonho qualquer! Era um daqueles virtualmente inatingíveis, e a minha ficha parecia que jamais iria cair.
O piloto avisou que o tempo em Porto Alegre estava bom... para a agricultura, porque chovia. “Humor de piloto”, disse ele. Eu gargalhei alto. E continuei gargalhando enquanto assistia uma entrevista da Wanda Sykes no programa da Ellen naquele arremedo de televisão individual que alguns aviões têm. Decolamos, e o voo foi uma hora e vinte minutos de pura poesia. Eu estava nos céus figurativamente desde o dia anterior, e agora também estava no sentido literal. E, em outra ironia do destino, eu, que  me identifico mais do que deveria com a personagem Carly Marshall, do filme Blue Sky (o segundo Oscar de Jessica, conquistado na edição do ano do meu nascimento), estava diante do céu mais azul que já vi.
Aterrissamos em Porto Alegre e o tempo já não estava mais tão bom assim para a agricultura. Peguei minha mala, entrei em um táxi e, depois de seis dias, voltei para meu apartamento. Sentei no meu sofá-cama e sorri. Tudo o que eu queria, eu consegui. Tudo deu certo.


19. Um novo Carlos
Enquanto estava aguardando na fila do MIS, não parava de pensar que aquilo era algo momentâneo. Eu teria aquelas horas para sempre na memória, mas a partir do instante em que eu botasse o pé para fora do avião aqui no Rio Grande do Sul, voltaria à rotina e à normalidade do cotidiano. Eu não poderia estar mais equivocado.
A partir da compra das passagens de avião, eu estava dando início à concretização de um sonho. Um sonho que sequer passava pela cabeça como passível de se tornar realidade.
Não quero ser professoral ou trazer mensagens de autoajuda, quero compartilhar algo que percebo agora com mais clareza: nós confundimos demais sonhos com planejamentos. Comprar a casa própria, se formar na faculdade, tirar carteira de motorista, fazer intercâmbio... isso, mesmo que muitas vezes seja complicado de realizar, são planos para o futuro. E, quando um planejamento dá certo, nos realizamos como cidadãos e partimos para um próximo planejamento. Com os sonhos, não é assim. O sonho envolve vários fatores externos, que muitas vezes definem as características do que a gente deseja. Eu planejei a viagem para São Paulo economizando dinheiro e pedindo pouso para meu primo, planejei meus passeios por lá, planejei minha ida antes do sol raiar para o Museu da Imagem e do Som. Momentos como interagir com Jessica durante o bate-papo e ser reconhecido por ela depois, ganhar um autógrafo e, ora, fazer amizades maravilhosas compõem a parte que não era de minha responsabilidade. Isso tudo é o que compunha o meu sonho. A minha parte, o planejamento, eu fiz com dedicação. A parte do sonho me foi concedida por uma conjuntura perfeita de fatos. E é por isso que vejo a diferença entre planejamento e sonho: quando teu planejamento dá certo, tu ficas feliz contigo mesmo. Quando um dos teus maiores sonhos se realiza, tu percebes que aquela chama de esperança, que parecia ter diminuído no fim da infância, volta a arder dentro de ti. Eu sinto essa chama em mim como nunca havia sentido antes, e sei que ela jamais se apagará.
A maioria dos meus planejamentos hoje me parece quase inviáveis a curto e médio prazo, mas a realização de um sonho te traz de volta a facilidade de sorrir à toa, e te faz ter certeza de que nada é impossível. Ter essa certeza não depende apenas da gente, mas também dos outros, e do mundo que cada um constrói.
Ser fã de alguém está longe de ser algo idiota: conhecer a vida e a obra do teu ídolo e te espelhar nele define quem tu és, o que tu intencionas e “o que tu queres ser quando crescer”.  A experiência de interagir com Jessica Lange não me mostrou apenas que ser fã dedicado realmente compensa: também fez com que eu voltasse a celebrar a arte, a alegria, a vida.
A gente só conhece a verdadeira felicidade quando um sonho se realiza. A felicidade vem quando tu ouve pela primeira vez a música que vai se tornar a tua favorita, quando tu vê o teu time ser campeão, quando tu te apaixona por alguém e percebe a reciprocidade, quando tu conhece alguém que tu te espelha e te identifica.
Eu já havia conhecido a felicidade antes, mas não sabia que a intensidade dela não tem limites. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, um novo mundo se abriu para mim. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, encontrei dentro de mim o Carlos que eu tanto queria encontrar. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, eu sou a pessoa mais feliz do mundo.


20. Dedicatórias
Preciso aqui agradecer a algumas pessoas que foram de suma importância para a realização desse sonho:
- À minha mãe, Margaret Müller, por me ajudar na compra das passagens e compreender a importância da viagem para mim;
- Ao boss do Série Maníacos Michel Arouca, pelo entusiasmo sobre o relato e a carta branca para fazer algo tão pessoal;
- Ao Rodrigo Mathias e à Martina Brusius, que me acolheram e foram os melhores anfitriões possíveis, me deixando atrapalhar o cotidiano deles durante esses seis dias;
- Ao Bruno Ferreira, pela irreverência e simpatia contagiantes;
- À Marina Estrella, moça brilhante, que merece todo o sucesso do mundo com a MAD Alternative Models (e, quando puder ajudar para atingir esse sucesso, estarei à disposição);
- Ao Gabriel Novaes, que tem o coração de ouro que todo o bom jornalista precisa ter, e por ter me dado o ótimo apelido de “Gaúcho”;
- Ao Hermano Henrique (que tem um baita projeto de mestrado sobre freakshows no Brasil), Paulo Nonato, Fernanda Albuquerque e a persistente Natália Molico, pela ótima companhia;
- Ao pessoal atencioso do Museu da Imagem e do Som, desde os seguranças até a “alta cúpula”;
- A vocês, leitores do Série Maníacos, que acompanharam o meu relato;
- Por último, à Jessica Lange. Por tudo.