Quando Jessica Lange veio ao Brasil em fevereiro, fui para São Paulo conhecê-la. Esse relato abaixo foi publicado em três partes no Série Maníacos, site que escrevo. Aqui, publico na íntegra. Boa leitura.
1. Introdução
Antes de qualquer coisa, preciso dizer o
óbvio: sou fã da Jessica Lange. Fã mesmo, fã hard. Sempre tive um carinho grande por ela, principalmente depois
que descobri, lá pelo começo da minha adolescência, que ela ganhou o Oscar na
edição que premiou filmes lançados no ano do meu nascimento. Me tornei fã
mesmo, dedicado, a partir de 2009, quando ela venceu o Emmy de Melhor Atriz em
Minissérie ou Telefilme, interpretando a lendária Edith “Big Edie” Bouvier em
Grey Gardens, ótimo projeto da HBO.
Qual não foi a minha surpresa ao saber que
Jessica havia entrado para o elenco de uma série nova do Ryan Murphy para o
canal FX? Essa American Horror Story me conquistou logo que eu soube disso, bem
antes do lançamento. A série estreou, e no fim do primeiro episódio eu pensei
comigo mesmo que, com a interpretação da amargurada Constance Langdon, Jessica
Lange seria a nova rainha da televisão.
Dali em diante, 2012 se mostrou um ano
recompensador para mim, pois Meryl ganhou o terceiro Oscar, e eu gritei e
chorei feito um doido, e Jessica ganhou seu quinto Globo de Ouro, segundo Emmy
e primeiro Screen Actors Guild Awards. E, em outubro daquele ano, dei início à
minha vida real de sériemaníaco quando American Horror Story: Asylum estreou.
Jessica interpretava sister Jude, que comandava com mãos de ferro o hospício
Briarcliff.
De imediato a segunda temporada de AHS me
conquistou, e, somada à minha paixão por Jessica, veio a vontade de ler tudo
que encontrava sobre a série. Comecei a acompanhar os textos do Henrique Haddefinir, sempre tão profundos e complexos, e
me tornei leitor assíduo do Série Maníacos. Quando vi que tinha vaga para
entrar para a equipe, me joguei de cabeça e, dois anos depois, aqui estou.
2. “Jessica
Lange virá ao Brasil em fevereiro”
Pulemos para outubro de 2014, dois anos depois
da estreia de Asylum. Meus amigos Will e Luciano dariam uma festa de Halloween
(ou, como eu chamava, HalloWill), e eu precisava de uma fantasia. Como não me
fantasio de qualquer porcaria, honrei uma das melhores personagens em séries de
terror: sister Jude. Franja loura, crucifixo, roupa sensual por baixo e
maquiagem para marcar meus ossos no rosto de modo que eu ficasse parecido com
Jessica Lange.
Com fotos publicadas no Facebook, fui recebido
no trabalho com aclamação na segunda-feira após a festa. De acordo com meus
colegas, eu era a melhor freira que já tinham visto. Perguntavam o porquê da
franjinha, e eu explicava que “era o personagem da Jessica Lange numa série
chamada American Horror Story”. Fui mais elogiado ainda. E, embalado por esses
comentários, comecei a ler um post interessantíssimo do Papel Pop enviado por
um amigo que se lembrou de mim. O texto, Um tributo para Jessica Lange, a
rainha suprema da TV e do cinema, apresentava curiosidades sobre a carreira de
Jessica para um público que, em maioria, conhecia apenas seu trabalho em
American Horror Story. Não havia nenhuma grande novidade no post pra mim, até
chegar nesse parágrafo: “O que?! Nossa
suprema é fotógrafa?! Isso mesmo. Há 20 anos atrás, seu até então marido Sam
Shepard lhe deu uma câmera Leica de presente e a atriz amou! Ela começou a
fazer fotos de seus filhos, família e lugares que visitou, tudo em preto e
branco. Em 2008 ela lançou o livro “50 Photographs”, uma coletânea com 15 anos
de fotografia. Melhor parte: Tudo isso poderá ser visto em breve! Jessica Lange
vem ao Brasil em fevereiro de 2015. Ela trará a exposição ‘Unseen’ ao Museu de
Imagem e Som de São Paulo. Serão 135 fotografias da atriz, boa parte delas
durante visitas ao México, Finlândia, Etiópia e Rússia”. Fiquei em choque.
Falei para meus chefes na hora que, em fevereiro de 2015, eu veria Jessica
Lange em São Paulo. Não tinha a mínima ideia de como iria, onde ficaria, se
teria dinheiro. Mas essa oportunidade eu não deixaria escapar.
Lá por janeiro anunciaram que ela viria para a
abertura da exposição em um evento apenas para convidados. Isso não diminuiu em
nada meu ímpeto de ir, tanto que entrei em contato com amigos paulistanos que
poderiam ter conhecidos dentro do MIS, e de alguma forma pudessem me colocar lá
dentro. No fim do mesmo mês, a programação definitiva foi anunciada: seria um
bate-papo com o público no dia 10 de fevereiro. Hora de comprar a passagem,
mesmo pagando o dobro do preço que pagaria se tivesse comprado com um mês de
antecedência. Tive que explicar para meu planejamento financeiro e para a minha
mãe que não tinha culpa sobre a data certa da vinda de Jessica ser divulgada
tão tarde, e, apesar de não esconderem o contragosto, os dois me ajudaram nessa
empreitada. Voo da Azul saindo 11h para Congonhas no dia 06/02, volta às 14h do
dia 11/02 para Porto Alegre. Lá se foram R$ 450 reais, doloridos ao servirem
como investimento na realização de um sonho incerto, mas necessário. O sonho
era incerto porque o MIS abriu 50 vagas para quem mandasse um minicurrículo
mostrando o porquê que a pessoa merecia garantir uma entrada sem precisar
chegar cedo na fila. Eu só consegui mandar o currículo horas depois do prazo,
porque estava sem internet e cuidando de uma insolação violenta. Fiz um texto
muito legal, explicando meu problema de conexão e comentando que estava indo de
Porto Alegre só para o evento. Não colou. Então, amigos, seria na cara e na
coragem.
3. Contagem
regressiva
Passagem comprada, tudo acertado com o meu
primo Rodrigo para ficar no apartamento que ele divide com a namorada, Martina,
em São Paulo. Cheguei sexta-feira (6), deixei minha mala no apartamento dele e
saí para passear. Eu teria quatro dias inteiros antes do evento para passear,
então preenchi todas as horas possíveis com planos para tentar tirar meu
pensamento de Jessica. Fui ao MASP, Parque Trianon, Itaú Cultural, Memorial da
América Latina, Edifício Copan, carnaval de rua na praça Roosevelt, pontos de
táxi na avenida Angélica, 25 de Março, Liberdade, visitar as inimigas lá no
Instituto Butantan. E, nesses dias antes do evento, todas as noites fiz uma
caminhada pela supreme das avenidas,
a Paulista, ouvindo Life on Mars, Gods and Monsters, Heroes, The Name Game,
September Song, We Belong Together... Era uma dose diária de ansiedade, mas que
servia para manter meu furor aceso – não que precisasse ouvir Jessica cantando
para me deixar on fire, mas por que
não?
Enfim, me diverti demais nesses dias, mas
quando chegou a noite de segunda-feira eu sabia que precisava me dedicar ao
máximo ao motivo maior da viagem. Antes de me acomodar, deixei roupas,
documentos, dinheiro e o livro 50 Photographs separadinhos. Só não consegui
domar meu lado fã, o que me levou a deitar às 22h e conseguir dormir quase 1h.
Afinal, eu sabia que acordaria em um dia surreal.
4. É hoje!
4h20 da manhã: toca o despertador.
“Só mais cinco minutinhos”, que no fim foram uns vinte. Quando acordei de vez,
me sentindo o rei da inconsequência, olhei para a janela entreaberta e pensei
“é hoje”. Vesti as calças, meias, tênis. Ia para a fila com a camiseta que usei
como pijama, e lá trocaria por uma limpa e bonita. Na sacola de tecido estavam
o livro, uma caneta, uma revista, balas e uma caixinha de barras de cereal.
Comi um sanduíche, tomei água e saí para caçar um táxi na Paulista. Sempre
movimentada, a avenida é o máximo no fim da madrugada. As banquinhas de café da
manhã na rua, pessoas indo para o trabalho, skatistas. Achei um ponto de táxi
perto do Itaú Cultural, entrei no carro e disse “Jardim Europa, no Museu da
Imagem e do Som. Não lembro mais a rua, desculpa”. O motorista sabia, e lá
fomos eu e ele conversando.
Foi um percurso relativamente longo.
Passamos o Ibirapuera e entramos nas ruas tortuosas e arborizadas dos Jardins,
área nobre paulistana que eu só conhecia de nome, e de saber que a Marta
Suplicy mora por lá. Achei curioso como é um contraponto da ideia que a cidade
de São Paulo nos passa, porque o Jardim Europa é um bairro surrealmente escuro.
Não tinha um poste de luz nas ruas, e por isso foi engraçado quando chegamos à
iluminada avenida Europa. Paguei os trinta reais ao taxista e desci.
5. Avenida
Europa, 158
Era seis e alguns minutos da
madrugada, e, como eu disse e volto a ressaltar, ainda estava tudo escuro.
Caminhei da esquina até a entrada do museu, e não tinha uma alma por ali. Logo
em seguida uma senhora desceu na parada de ônibus e passou por mim, e aí
perguntei para ela se havia um bar ou algo assim ali por perto, e fui tagarelando
e dizendo que a distribuição dos ingressos era só às 17h, e eu estava com sede,
etc. Ela me indicou uma banca de revista naquela mesma quadra, e um posto de
gasolina numa esquina três ruas acima. E, cordialmente, me desejou boa sorte.
Passei na banca e comprei uma Folha
de São Paulo só pra ver se a exposição e a vinda da Jessica seriam noticiadas,
e qual o espaço dado a isso no jornal. Depois fui até o posto, e lá comprei uns
chocolates, um refrigerante e uma keep cooler (afinal, o dia seria longo... e,
mesmo na falta do meu amado Martini, já era bom ir começando os trabalhos).
De volta ao MIS, vi um rapaz e uma
mulher vestidos de preto sentados num banquinho dentro do pátio do museu. Como
a corrente ainda estava posta na entrada, pensei que trabalhavam por lá. Então,
sentei na calçada e comecei a dar uma lida sobre novidades na captação de água
no sistema Cantareira. Não muito tempo depois, os dois de preto vieram falar
comigo. “Você está na fila pra ver a Jessica Lange?”. “Sim, estou”. “A gente
também, o segurança nos falou para ficar aqui dentro. Vem com a gente”. Então
eu não era o primeiro, era o terceiro. O que, no fim da história, não mudaria
em nada as minhas chances de conseguir a senha.
A moça se chamava Marina, 24 anos,
dona da primeira agência de modelos alternativos do Brasil. O menino era o
Bruno, 17 anos, que ajuda a mãe numa oficina de costura em Guarulhos. E, junto
com esse estudante de jornalismo gaúcho de 20 anos, éramos os três primeiros na
fila. E lá ficamos apenas nós três, conversando sobre Jessica. Logo chegaram
mais pessoas, com as quais também fizemos amizade: o Hermano, o Paulo, a
Natália e a Fernanda. Como eu, Marina e Bruno ocupávamos o único banco que não
estava molhado, espalhei folhas do jornal no banco ao lado para que os quatro
não ficassem de pé. Já havia localizado e guardado a nota sobre a exposição na
Ilustrada, uma nota discretíssima de uma frase só. Achei maravilhoso.
O tempo passou, o dia amanheceu e foi
chegando mais gente na fila. Alguns com camisetas de American Horror Story,
outros que pareciam ter saído da Miss Robichaux's Academy for Exceptional Young
Ladies. Quando o relógio marcou 7h, comemoramos: daqui a dez horas distribuirão
as senhas.
6. Ser fã
é padecer sob o sol
Em torno das 9h, fomos avisados que deveríamos sair
do espaço coberto dentro da área do museu por motivo de regras da casa, e
tivemos que formar fila na calçada. E, como é de se esperar numa situação
assim, o sol brilhou forte e nos cozinhou enquanto estávamos sentados em
tijolos ou sobre as folhas da Folha. Conversávamos para matar o tempo e tentar
esquecer o calor, e assim debatemos RuPaul’s Drag Race, Once Upon a Time, Revenge.
Além de, claro, prestarmos atenção nas pessoas da rua como bons shady bitches
que éramos. Passou um grupo de senhoras: “chegou o conselho de bruxas”.
Apareceu uma moça loira de terninho e batom vermelho: “a Cyndi Lauper veio, que
ótimo”. Uma Kombi parou na calçada: “a Jessica vai sair ali de dentro”. Ainda
debochávamos das pessoas que paravam na frente do Bruno como se nada tivesse
acontecendo. “Precisa de ajuda?”, perguntávamos. “Aqui é a fila pra tirar a
senha?”. “Aqui é o começo, o fim é lá pra trás”. Porra, não era óbvio que o
começo da fila era na frente do museu, e o fim por consequência era na outra
ponta?
Lá pelas 11h, uma moça muito bonita e chiquérrima
com um vestido laranja e um colar prateado, veio nos perguntar ligeiramente
incrédula: “essa fila é para a exposição da Jessica Lange?”. Obviamente
assentimos, e ela, pasma, diz que “gente, vocês são fan-tás-ti-cos”. O Bruno
tinha dado uma saída para procurar um mercadinho e comprar comida e bebida, e
voltou muito tempo depois porque na área praticamente não tinha estabelecimento
comercial. Já era meio dia, e de almoço o Bruno comia um Cheetos, a Marina
tomava uma Coca zero e eu comia Kit Kat e umas bolachas que o Paulo tinha
trazido. Tudo isso, obviamente, na chapa quente que era a calçada da avenida
Europa.
7. O
conforto de um piso de concreto
Era 13h quando a moça de laranja retornou, duas
horas depois do nosso último encontro. Sim, foi liberado, poderíamos ir para a
parte coberta, ou seja, para a sombra, para a pedra geladinha, para poder
deitar no chão e ir ao banheiro numa boa. Não tinha do que reclamar. Aproveitei
para dar uma olhada no restinho que sobrou da exposição sobre o Castelo
Rá-Tim-Bum, um ou outro quadro de personagens que, em grande maioria, eu
realmente não me lembrava da existência.
Em um momento estranhamente confortante, o pessoal
do Museu colocou uma placa na nossa frente, marcando o começo da fila. Logo,
muita gente começou a vir para tirar fotos ao lado da placa.
Lá pelas 14h, chegou um pessoal da Folha de São
Paulo. E, obviamente, eles vieram até o começo da fila para saber quem éramos e
o que nos levou a estar lá tão cedo. A Marina foi entrevistada, o Bruno foi
entrevistado, e aí foi a minha vez. Quando falei que era de Porto Alegre, a
repórter me olhou fascinada. “Você veio só para ver a Jessica?” “Sim”. Falei
pra ela sobre como sou admirador do trabalho dela há anos, especialmente quando descobri que, no Oscar
que premiou os filmes de 1994, ano do meu nascimento, Jessica foi escolhida a
melhor atriz. A repórter não sabia ao certo a idade dela, e eu falei que eram
65 anos, porque ela nasceu em 20 de abril de 1949. “Você realmente sabe tudo
sobre ela!”. Não sei tudo, mas não tem como negar que sou muito, muito fã. E a
matéria foi prestigiosa comigo. Para quem quiser ver: “Jessica Lange faz fãs de American Horror Story amanhecerem no MIS”.
Estávamos todos lá sentados, tomando nossas águas,
conversando numa boa, sem esperar muitas novidades tão cedo. Em torno das
15h30, para a nossa surpresa, aparece um funcionário do museu com duas cartelas
de adesivos roxos. Cada um de nós, a partir do primeiro da fila, recebeu os
adesivos que garantiriam nossa entrada no evento. Todos nos olhamos em êxtase:
conseguimos!
Obviamente, quando os adesivos acabaram antes de
chegar na metade da fila, houve polêmica. O Bruno, cara de pau ao máximo, foi
lá super diva e com o cobiçado adesivo roxo no peito para ver a confusão. Por
um lado eu fiquei com pena de quem não conseguiu, mas por outro pensei que eu
fiz por merecer aquele terceiro adesivo distribuído – todos nós, lá no começo
da fila, merecemos pelo nosso esforço. A sensação de conquista é sempre boa.
Era 17h quando um pessoal veio nos encaminhar
para um novo lugar para fazermos fila, quase na entrada do auditório. O motivo
não foi explicitado, mas não gostamos muito do novo lugar. Era complicado para
sentar no chão confortavelmente, ir no banheiro, tomar água e, para quem
precisasse, fumar. Só que, como estávamos mais perto ainda do local do
bate-papo, se espalhou a sensação de que faltava bem pouco tempo, o que é
inegavelmente bom.
Lá, eu e o Bruno falamos muita bobagem para a
diversão do staff do Museu que “nos cuidava” na porta. Extremamente
prestativas, uma moça chamada Daniele e outra que não lembro o nome nos deram
bastante atenção.
Foi no começo dessa nova fila que eu, Bruno,
Marina e mais alguns amigos demos entrevista para a Juliene, repórter da Veja
São Paulo. Não tem como negar que dar entrevistas foi um ótimo passatempo para
nós. Apesar de estar bastante equivocada na frase “[...] pouco interessados na
mostra da diva, viram no evento a única oportunidade de vê-la ao vivo.”, a
matéria trouxe ótimas citações do Bruno, da Marina e minha. Deem uma olhada
aqui: “Exposição de Jessica Lange reúne fãs de
'American Horror Story'”.
Logo chegou mais alguém para ficar no começo
da fila, o Gabriel. Jornalista gente finíssima, ficou lá conversando com a
gente. Ele não ia nos entrevistar, e sim entrar no evento. Não havia problema
nenhum em ele estar ali com a gente, pois de qualquer modo a imprensa estava
com a entrada livre, ou seja, ele só entraria por um lugar diferente de seus
colegas. Foi ele, inclusive, que me apelidou de “Gaúcho”, algo que adorei, pois
ressaltou ainda mais o fato de eu ter vindo de um lugar distante apenas para
aquele evento.
Certo momento, um pessoal veio delimitar a
nossa fila, para formar outra ao nosso lado. Obviamente perguntamos que
história era aquela, e ficamos sabendo que era o pessoal que tinha conseguido a
entrada pelo envio de currículos. Não gostamos nada daquilo, afinal, eles não
haviam garantido uma entrada antecipada, e sim apenas a entrada em si. E nós,
na fila desde as 6h da manhã, não poderíamos ser prejudicados por isso. Não
houve problemas entre nós da fila do “povão” e os outros: eles mesmos
questionaram a falta de informações sobre como seriam as circunstâncias da
entrega de suas senhas. Com uma polêmica criada ali, apareceu o diretor do MIS,
o cineasta André Sturm, para ouvir as nossas queixas.
Indo na contramão do que haviam nos pedido,
ele disse que “obviamente” quem chegou de madrugada para o evento deveria
entrar primeiro, e quem tinha a entrada certa por causa dos currículos deveria
estar na fila como todo mundo. Enquanto ele ouvia o que todos tinham para
dizer, pedindo desculpas em nome do MIS pela confusão a respeito de como
funcionaria a entrada (o que, mesmo que de coração, não tinha como representar
grande coisa naquela situação), uma moça afirmou que o que estava acontecendo
era uma falta de respeito com eles. Sturm, começando visivelmente a se irritar,
perguntou “de quem? Quem está faltando com o respeito?”. “O senhor”, disse ela.
Aí, minha gente, foi um Jessica Lange nos acuda. Exaltado, Sturm disse que
estava conversando com a gente de forma pacífica e na melhor das intenções para
solucionar aquele problema, e que ela estava apelando para criar confusão e
evitar um acordo. Ele disse que poderia mandá-la para o fim da fila se ela
estava descontente, inclusive. A partir desse momento eu fiquei um pouco
perdido, porque eu e a Marina nos olhávamos com uma cara de choque, mas ouvi a
moça dizendo que chamaria a polícia se fosse proibida de entrar, e Sturm falou
alto “chama, chama!”. No fim essa moça acabou indo para o fim da fila e a
polícia não apareceu. A solução partiu de nós mesmos: entraríamos juntos. Três
ou quatro da fila comum, um ou dois do pessoal da entrada garantida. O Gabriel
entraria também como um dos primeiros, mas, como já disse, isso não era
problema, pois ele era da imprensa.
Era 18h40 quando uma das funcionárias veio nos
avisar, em alto e bom som: “por favor, todos com identidade e senha em mãos”.
Todos nós nos olhamos, vibrando. Tirei a identidade do bolso e a senha de
dentro do celular, e a porta foi aberta. Entrou o Gabriel, a Marina, o Bruno, o
primeiro da fila dos currículos e eu. A identidade era para pegar o fone de
ouvido que teria a tradução simultânea, então eu passei direto. Entreguei a
senha para a pessoa na porta do auditório e entrei.
Como as poltronas da frente estavam reservadas
para convidados do MIS, sentamos no centro da segunda fileira. Gabriel, Marina,
Bruno, eu. Ao meu lado, uma moça muito simpática chamada Débora. Agora não
tinha o que eu pudesse fazer para que algo desse errado: chegar cedo na fila
foi uma atitude esperta, eu já estava numa ótima localização... Agora não era
mais comigo o assunto. Agora, era só esperar Jessica Lange. E só me restava
contar o tempo.
7 minutos, 5 minutos, 1 minuto... Era 19h03 e
o evento realmente começou.
André Sturm veio ao palco e pediu para que houvesse
certo padrão de respeito, bom senso e decoro – ou seja, os fãs que
provavelmente dariam gritos estridentes ao ver Jessica entenderam que o aplauso
é o que vale mais. Entrou no palco o fotógrafo Iatã Canabrava, mediador do bate-papo.
Um cinquentão com roupas modernas e meio baixinho, Canabrava simbolizava, para
nós, o último obstáculo para até que enfim vermos Jessica. Em seguida, o
diretor pega o microfone para introduzir a estrela da noite. Queria tanto
lembrar o termo certo que ele usou para defini-la, mas sei que era algo como
“única”, “incomparável”, algo assim. Ele anuncia, finalmente: “A (algum
adjetivo)... JESSICA LANGE”. O nome
fez a plateia explodir em aplausos, levantando de forma abrupta e olhando
atentamente para a porta. Mas os aplausos diminuíram de ritmo e ela não
apareceu naquele momento.
Ela apareceu cinco segundos depois.
Meu corpo ficou dominado por um sentimento que não
conhecia, e que me deixou bambo. Eu estava de frente para Jessica Lange, duas
vezes vencedora do Oscar, premiada com cinco Globos de Ouro, três Emmy e um
Screen Actors Guild, que entrava no palco rindo e acenando. A intérprete de
Frances Farmer, Patsy Cline, Angelique, Big Edie, Carly Marshall, Constance
Langdon, sister Jude, Fiona Goode, Elsa Mars... ali, tão próxima, ao mesmo
tempo humana e divina. Eu estava vivendo o melhor sonho da minha vida. Foi um
momento fenomenal, como dá pra ver nesse frame que meu amigo me encontrou vendo o Jornal da Globo. Aquela pessoa cabeçuda aplaudindo efusivamente no canto esquerdo sou
eu.
Nós na plateia quadruplicamos a intensidade dos
aplausos. E os gritos detestáveis, mas compreensíveis, obviamente aconteceram.
Ela acena para nós, sorrindo e nos ofuscando a apenas uns metros de distância!
E, ao se sentar, ela fez um movimento com os dedos médio e indicador, rindo. O
Bruno, ao meu lado, agarrou meu braço e disse “ela fez aquilo pra gente!”. Claro, é muito fácil um artista parecer
que olha só pra ti enquanto olha para dez pessoas ao teu redor. Mas, levando em
consideração que eu e a Marina estávamos com o livro dela nos braços, ela pode
ter visto e reconhecido. Além do mais, não tinha ninguém na primeira fileira
ainda, e não vi ninguém atrás de nós com o livro.
Iatã Canabrava esperou a plateia silenciar para
pedir “só aplauso”. Então, aplaudimos
efusivamente. Ele diz, então, que pediu “aplauso”,
assim no singular, e diz que vai nos puxar para o aplauso coletivo. “Clap”.
Essa foi apenas a primeira parte das várias bolas-fora do mediador. Ainda bem
que Jessica ainda não tinha colocado os fones de ouvido para ouvir a tradução,
porque senão teria esboçado uma reação de “what
the fuck?” menos discreta.
Enquanto Canabrava introduzia o evento, Jessica
tentava colocar os fones de ouvido para ouvir a tradução. Ela tentou por um
tempo, e deu uma gargalhada, dizendo algo como “I need some help here”. Com a help concedida e a plateia ansiosa,
começou o bate-papo.
Lendo as perguntas em um papel, Canabrava comenta que a fotografia
muitas vezes é uma representação de crenças e ideais, e, hoje, se mostra como a
lembrança do mundo que desejávamos antigamente. Mudando um pouco esse
pensamento e trazendo a fotografia para o presente, ele pergunta: “Você tem interesse em fotografar o mundo dos
fãs? O mundo da televisão... o mundo que está tão próximo ao seu?".
Ela ouve, hesita e responde “Not so much!”,
para a gargalhada geral.
Ela explica que,
como fotógrafa, é atraída muito mais pelo singelo e pelo corriqueiro do que
pelos bastidores do trabalho. Portanto, ela prefere trabalhar com o que não
está tão próximo dela como celebridade.
Jessica emenda
que “o que nos atrai em uma imagem já feita é o que nós gostaríamos de fazer”.
E, vendo fotografias de Cartier-Bresson, Walker Evans e outros na parede de
casa, ela tinha o primeiro grande impulso para fotografar e se espelhar.
Jessica conta que, em uma visita a uma galeria, ela e uma amiga fotógrafa
fizeram um teste: escolher, dentre toda a exposição, qual fotografia elas
comprariam. Não recordo qual a amiga escolheu, mas a favorita de Jessica era a
de um casal sob as luzes de uma rua. A amiga de Jessica, então, disse que elas
escolheram as fotos que mais gostariam de ter feito elas mesmas. “Eu sou atraída por todos esses momentos, e
eles não são necessariamente momentos modernos, não são necessariamente
momentos contemporâneos, não são os momentos que eu vivencio quando vou ao supermercado
ou quando vou ao set, ou qualquer coisa assim. Isso não me interessa tanto. Não
tem o romantismo, não tem o mistério, não tem a cumplicidade dos momentos, dos
gestos, da intimidade que me interessa como ser humano e, por consequência, me
interessa como fotógrafa”. Resposta aplaudidíssima por nós.
Em seguida,
Canabrava traz à conversa o novo livro de Jessica, It’s About a Little Bird,
uma história para crianças. Ele fala da beleza das ilustrações do livro, e
pergunta como ele foi idealizado. Jessica responde que, em sua família, há a
tradição de trocar presentes de Natal feitos por eles mesmos. Ela geralmente
presenteava fotografias, mas naquele ano decidiu que faria um livro para as
netas. E, em certo dia, ela acordou e a história “se escreveu sozinha” em sua
mente. Então, na medida em que transcrevia para o papel, imaginava as imagens
que acompanhariam o texto. Como sempre foi fascinada por diversos tipos de
fotografia, Jessica escolheu um processo antigo de colorir fotos em preto e
branco para ilustrar o livro – fotos das próprias netas.
Um ano depois,
uma amiga de Jessica viu o livro e perguntou por que ela não publicava o livro.
Ela diz que se deixou levar, e “now it’s
a children’s book!”. Em seguida, ela completa: “Eu estou indo para trás na tecnologia ao invés de ir para a frente,
porque eu sei que se pode fazer isso tudo no Photoshop, e fazer o que você
quiser, mas eu ainda estou interessada no processo antigo”.
Canabrava puxa a
terceira pergunta. “Avessa à fotografia
digital e a todo tipo de selfie...”, e Jessica já começa a rir. “E vocês todos pensando em selfie”, ele
diz para nós. Jessica olha para a parte onde eu estava, e eu disse um no mudo e fiz um movimento negativo com
o dedo. Ela sorriu, e eu me arrepiei. “Como você vê a popularização da
fotografia pelo Instagram? Jessica, você tem Instagram?”. A nossa reação na
plateia foi impagável. Não é segredo que Jessica é uma pessoa que mantém a vida
pessoal em privado, e é avessa a redes sociais. Ele completa, talvez para
corrigir a visível trapalhada: “Como você
vê esse movimento de se estar fotografando tudo o tempo todo?”. Ela, com um
tom leve, diz: “Me parece que nós estamos
em algo que é quase patológico, quase sociológico. Essa ideia de se registrar
em cada segundo do dia. Isso não faz absolutamente nenhum sentido para mim”.
Ela ressalta que começou a fotografar os filhos crescendo, e que queria
retratos sem pose, e sim fotos de momentos corriqueiros – e em preto e branco.
E, logicamente, diz que gosta da ideia de ter um registro visual da vida. Contudo,
ela ressalta: “Essa ideia de que cada
momento precisa ser gravado… Quero dizer, quem se importa tanto com você?
Sério, quem se importa tanto que quer ver todos os momentos do teu dia? Se há
alguém que se importa tanto assim, Deus te abençoe!”. Não havia uma pessoa
naquele auditório que não estivesse gargalhando.
Seguindo no mesmo raciocínio, ela diz: “Vou dar um exemplo, ok? Eu estava sentada em
um lindo parque daqui outro dia, esperando um amigo que estava fazendo um
telefonema muito importante. Eu estava sentada lá, e um jovem casal chegou.
Eles estavam apaixonados, eles deviam ter apenas dezoito, dezenove anos de
idade. Eles sentaram e eu pensei – e eu tinha a minha câmera comigo – ‘oh,
ótimo, eu vou tirar uma linda fotografia desses dois jovens anjos se beijando
ou se abraçando ou algo assim’. Havia algo incrivelmente romântico, sedutor,
com o verde e a luz que vinha... Eles sentaram, e os dois pegaram seus iPhones.
Primeiro eles fizeram isto (e ela faz um movimento de deslizar na tela de
um celular) por uns dez minutos. E então
eles fizeram isto (aí ela finge que está tirando selfies), tirando fotos deles mesmos. Não teve um
abraço, não teve um beijo, e eu pensei ‘oh, os tempos mudaram!’. Eu não sei se
mudaram para melhor”.
A quarta questão era mais um desafio. Canabrava diz
que, segundo a própria Jessica, o fotógrafo não deveria pensar em si, mas sim
no que acontece ao redor. Contudo, o trabalho de Jessica é bastante autoral. A
partir disso, ele quis saber se havia um paradoxo nisso. Ela responde que não
necessariamente, porque o fotógrafo sempre trabalha de acordo com a vivência e
a forma com a qual percebe a vida. Jessica diz que uma outra amiga fotógrafa
chamada Brigitte Lacombe vê no trabalho dela a influência da solidão que sempre
a acompanha. “A verdade é que, sim, é bem pessoal, é sobre a sua vida o
fotografar. Tem que ser sobre a sua vida porque, você sabe, não seria íntimo,
não seria pessoa, não seria único para você”. Nós aplaudimos bastante, e ela
completa, para nosso deleite: “Sex, drugs
and rock ‘n’ roll!”.
Hora das perguntas da plateia. Apenas três, para a
chateação geral – afinal, dentre as mais de 150 pessoas no auditório, sem
dúvida havia melhores perguntas do que as feitas por Canabrava. A primeira e
interessantíssima questão era sobre se e como as carreiras de atriz e fotógrafa
se mesclavam, e como uma influenciava na outra. Ela diz que usou muitos
registros visuais para compor personagens não fictícios em seus trabalhos, como
a atriz Frances Farmer, a cantora Patsy Cline e a excêntrica socialite Edith
“Big Edie” Bouvier Beale. E, para compor um personagem fictício, ela procura
imagens que são relacionadas à caracterização e ao roteiro. Ela cita Elsa Mars,
a cantora alemã dona do freakshow na quarta temporada de American Horror Story
(e a plateia fica em êxtase), e como pesquisou sobre artistas alemãs dos anos
20, 30 e 40 na antiga República de Weimar.
A segunda pergunta era relacionada a um dos
assuntos mais debatidos pelos fãs na fila: Jessica fotografando na 25 de Março.
Canabrava pergunta se ela tem interesse em fazer um livro com as fotos tiradas
em São Paulo, um novo “So Photographs”.
Eu e alguns poucos outros sopramos para ele que era “fifty, cinquenta!”. Ele, desconcertado, pôs a culpa na caligrafia
de quem escreveu a pergunta. Ela responde que não sabe se as fotografias que
tirou tinham ficado boas, e aí ressalta como uma curiosidade da profissão que,
muitas vezes, a melhor fotografia é aquela que o fotógrafo não se lembra de ter
feito.
A terceira pergunta da plateia eram duas em uma.
Qual trabalho específico de outro fotógrafo ela considerava o mais bonito?
Jessica responde que é a fotografia que viu na galeria com a amiga, em preto e
branco, “extremamente francesa”. E, das fotografias dela, qual mais a marcou
emocionalmente? Ressaltando que é muito difícil escolher apenas uma, diz que,
em um dia excepcionalmente quente, ela viu um casal deitando, ou, em suas
palavras, “caindo de forma sexy”, na
grama de um parque. Ela recosta a cabeça na mão dele, tudo com um ar sensual
por causa do calor. E, logo atrás do casal, uma placa “divertida”. Então, me dá
um estalo: essa foto é uma das minhas favoritas no livro. O casal deitado na
grama, realmente de forma sensual, e uma placa dizendo Cherry Chill ao fundo.
Num instante a encontrei na página 38, abri o livro e deixei a fotografia
visível para o palco.
Ela conta sobre como o momento era rápido, diz que bateu várias fotos, uma atrás da outra. E, encerrando a explicação, diz “and I got
one frame...”, aí ela olhou para a parte onde eu estava e, vendo a
fotografia, deu uma risada. Ela apontou com o dedo e eu perguntei “this one?”, e ela diz “That was it! Yeah...”. Ali não foi uma
interação passível de questionamento. Houve uma troca real naquele momento. Ela
riu, talvez pelo meu lógico apreço pela obra ou pela agilidade de achar e mostrar,
talvez pelo fato de a plateia realmente estar colaborando. O que importava pra
mim é que eu já tinha uma história surreal como lembrança.
A outra fotografia era uma que Jessica tirou em um
passeio com uma das netas, e a menina, inocente e corajosa, pegou uma pequena
cobra com as mãos (eu suponho, ou ao menos espero, que tenha sido uma cobra
morta). Essa, inclusive, é a fotografia que está no verso do folder da
exposição.
Para encerrar o bate-papo, Canabrava fez duas
perguntas que me fizeram sentir muita vergonha alheia. Ele quer saber qual foi
o momento em que Jessica percebeu que queria seguir a carreira de fotógrafa. A
plateia ficou insatisfeita, visto que, em primeiro lugar, uma pergunta assim
deveria ser feita no começo do bate-papo, e, em segundo lugar, ela meio que já
havia sido respondida anteriormente. Jessica explica, novamente, que começou a
fotografar os filhos e netas como recordação, e, depois, a levar a câmera para
as viagens que fazia.
Na segunda e última pergunta, Canabrava deixou no
ar uma afirmação estranhíssima, falando que via no trabalho de Jessica uma
mistura entre “sonho e mistério”, e pediu para ela falar sobre isso. Eu fiquei
indignado, porque, se ele não sabia antes do bate-papo que a solidão é uma das
maiores influências do trabalho dela, àquela altura já deveria saber. Jessica
riu, desconcertada, e disse que não entendeu direito o que ele quis dizer. A
emenda de Canabrava ficou pior que o soneto, então ela fez o que pôde para
responder que talvez a aura de mistério seja pelo fato de ela normalmente
fotografar à noite, e ser fascinada pela forma como as luzes se apresentam.
Após a pergunta ser respondida, André Sturm vem ao
palco com um enorme buquê de flores para encerrar o bate-papo e agradecer a
presença de Jessica. Todos nós estávamos vibrando e aplaudindo de pé. Ela,
lisonjeada, nos diz: “You really were a
great audience and I appreciate your attention very much. Thanks!”. E,
acompanhada por Sturm e Canabrava, deixa o palco. E, com Jessica fora do palco,
pensei: “essa é a noite mais incrível da minha vida”.
O preço de estar bem na frente no bate-papo, obviamente, é sair
por último do auditório. Fomos até a área que dava acesso à exposição, e lá
ocorria um coquetel com espumante, vinho branco e amendoim. Não sou de
dispensar bebida e comida de graça, mas só o que eu pensava era em ver Jessica
novamente. Então, subimos eu, Gabriel e Marina atrás da turba ensandecida. Ao
chegar no espaço, vejo uma
mulher loira, belíssima e com inegável botox que me chama a atenção. Pergunto
pro Gabriel: “aquela ali não é a Bruna
Lombardi?”. Era. Alguns tiraram fotos com ela e o Carlos Alberto Riccelli,
e Bruna não pareceu muito incomodada porque sabia que ali ela era como todos
nós – claro, mesmo com os privilégios de ser Bruna Lombardi, todos nós
estávamos lá para vermos Jessica.
Suponho que André Sturm subiu num
banquinho, porque ele estava bem mais alto que eu, e explicou como ia rolar a
volta de Jessica. Primeiro, ela viria por uma área central do andar, com uma
cortina preta e toda uma mise-em-scène que me lembrou um pouco American Horror
Story: Coven. Depois, ela iria posar ao lado das próprias fotografias. Como ela
não tira fotos com fãs, ninguém seria estúpido o suficiente para pedir uma
selfie, principalmente depois de ter visto o bate-papo. E lá estavam as pessoas
que tinham conseguido ver o bate-papo e o pessoal que assistiu pelo telão, então
dessa vez eu, Marina e Gabriel éramos os prejudicados ao invés de quem ficou no
fim da fila. Mas todos merecem a chance de ser me na vida, né?
Jessica apareceu novamente, para mais um estouro de aplausos e
gritos. Um minuto depois, precisamos abrir espaço para ela chegar à frente dos
quadros. Contudo, só quem estava bem na frente conseguia enxergá-la. E eu, com
meus 1m89cm de altura, via apenas relances. E era um empurra-empurra muito
grande. Para vocês terem ideia, eu, novamente, com meus 1m89cm de altura e mais
de 90kg, era arrastado no meio da multidão.
Em um primeiro momento, Jessica posou para os fãs. Extremamente
solícita, ela sorriu, cumprimentou, se mostrou uma diva incrível. Depois, ela
foi para outra parte da exposição, onde apenas jornalistas e o staff do museu
poderiam passar. O Gabriel, com o crachá de imprensa, conseguiu acessar a área.
Tem vezes que eu esqueço que nossa profissão é recompensadora... Ele, com o
autógrafo em mãos, foi dar uma olhada na exposição.
Em seguida,
funcionários vieram nos avisar que haveria sessão de autógrafos, e que
precisávamos nos organizar em fila. Fiquei sabendo depois de muita gente, então
fiquei quase no final da fila. Também fomos avisados que Jessica só autografaria
o folder da exposição, ou, para quem tivesse, algum de seus livros. Eu abracei
o 50 Photographs.
A fila demorou
muito para andar, porque tinha um amontoado não organizado de gente na ponta,
mas pelo menos fomos acompanhando e comentando as fotografias à medida que
dávamos no máximo três passos por minuto. Depois que aquele grupo conseguiu
seus autógrafos, tudo começou a fluir. Contudo, havia o receio de que, com
quase 150 pessoas na fila naquele momento, ela cansasse e, por consequência, desistisse
de continuar autografando. Mas Jessica, valente, não desistiu. Dessa vez, a
contagem regressiva não era de minutos: era de pessoas. “Tem uns vinte na nossa frente”, “Agora tem dez”, “Cinco”,
“É tu, Hermano, boa sorte!”. E,
depois do Hermano, eu.
16. “On the cover? All right!”
A moça disse que eu podia passar. Dois seguranças faziam um
pequeno cerco para impedir que nos aproximássemos demais – um reflexo óbvio da
turbulência do momento. E eu estava a menos de um metro dela. Alcancei o livro
para o diretor do MIS, e ele o colocou sobre a mesa na frente dela. Jessica deu
uma hesitada ao ver meu livro fechado, provavelmente por não saber em qual
lugar autografar. Eu disse “on the cover!", e ela sorri e me
responde "on the cover? All right!".
Não tinha mais como ficar em dúvida
sobre ela ao menos saber que eu existo, pois naquele momento Carlos Müller
Villela e Jessica Lange haviam conversado. Eu estava realizado, mas não podia
simplesmente esperar ela me dar o livro, eu dizer thank you e ela you’re welcome.
Então eu falei "I showed you the cherry chill picture”. Ela, que já vinha olhando para mim quando comecei a
falar, deu uma risada e, sorrindo, disse entretida "I know it! I remember! I know, thanks”. Ela alcançou o livro até mim, mas como eu não
podia passar do limite dos seguranças, o diretor do MIS me entregou. Em êxtase,
agradeci e disse "you're amazing.
you are the best, you’re really THE BEST". Ela riu e agradeceu, com um "oh, thank you really, thanks". Eu,
com um aperto no peito, fui caminhando para a saída da área, sem tirar os olhos
dela. Para meu espanto, ela continuava me olhando e sorrindo. Então eu sorri e
acenei, abrindo a mão e movimentando os dedos. E ela sorriu mais ainda e acenou
de volta da mesma maneira. Eu mandei um beijo, e ela riu. E mandou o beijo de
volta. Ainda rindo um pouco, foi dar atenção para o fã que estava atrás de mim.
E, saindo daquele grupo de gente e indo para onde meus amigos de fila estavam,
entrei num torpor violento.
Saí abraçado no livro e vejo Natália, Paulo e Fernanda amando seus
autógrafos. Eu não sabia como proceder a partir daquele momento. Creio que
minha pressão ficou instável, porque estava tremendo, meio mole, sem conseguir
verbalizar um raciocínio de forma conexa. Ao meu lado, vi duas das funcionárias
do MIS que estavam “cuidando” e conversando com a gente no começo da fila. Eu
abracei as duas, enchi de beijos na bochecha. Cheguei até meus amigos, e
comecei a admirar o autógrafo. Lindo, apaixonante. E com a tão especial
marquinha azul da caneta falha.
Contamos nossos momentos com Jessica, trocamos contatos e me
despedi deles, lamentando que tinha perdido o Hermano de vista. Desci com o
Gabriel para encontrarmos o Bruno e a Marina, e, enquanto ele tinha ido
conversar com um amigo, eu aproveitei para pegar uma merecida taça de vinho
branco. A Marina estava na rua, e me contou sobre como o diretor do MIS a levou
até Jessica para pegar autógrafo, e como elas conversaram e até trocaram aperto
de mãos (óbvio que eu apertei a mão da Marina em seguida, né). Eu subiria até a
Paulista com o Gabriel e o amigo dele, mas decidi ficar conversando mais com a
Marina. Me despedi dele, sem dúvida uma baita companhia, e lá ficamos eu e a
Marina tomando vinho e espumante, nos sentindo a metros do chão. Ela precisava
ir para casa, e eu desejei a maior sorte do mundo para ela. Eu, ela e o Bruno
nos conectamos muito bem, quase como amigos de longa data. E, inegavelmente,
cada um de nós foi responsável por fazer o dia do outro o melhor das nossas
vidas. Vai ver por isso que dizem que a amizade de fila é tão boa.
Sozinho pela primeira vez em quinze horas, peguei o táxi rumo ao
apartamento do meu primo. Puxei papo com o taxista, que não tinha a mínima
ideia de quem era Jessica Lange, e fomos conversando sobre como São Paulo
consegue ser gigantesca e aconchegante ao mesmo tempo. Cheguei no Rodrigo, e
ele e a Martina estavam no sofá assistindo Breaking Bad. “E aí, Carlos, como foi?” “Incrível.
Incrível”. E aí fiquei uns quinze minutos na cozinha, olhando para o nada.
O Rodrigo foi me dar boa noite, e eu conversei um pouco com a Martina sobre o
evento. Ela não se surpreendeu muito quando falei sobre a polêmica entre a moça
na fila e o diretor do MIS, porque aparentemente ele é conhecido por não ter o
temperamento fácil. Eu não consegui contar muito sobre o bate-papo e a sessão
de autógrafos, simplesmente porque começava a tremer só de pensar. As palavras
me faltavam, e só conseguia falar adjetivos como incrível, surreal,
inacreditável, onírico. Ela foi dormir, e eu tomei banho e me deitei. Após esse
dia tão intenso e, por incrível que pareça, nem um pouco exaustivo, custei a
dormir.
Acordei sem sono lá pelas 8h. Era meu último dia em São Paulo, e a
minha missão teve êxito muito maior do que esperado. Então, ainda tremendo
muito só de me lembrar do dia anterior, saí para um último passeio na cidade. Fui
conhecer a Galeria do Rock basicamente para comprar uma pop figure da Fiona
Goode, mas já tinha esgotado. Lamentei, mas, para quem já tinha visto Jessica
Lange em carne, osso e brilho, a boneca não era tão necessária assim.
Retornei ao apartamento, terminei de arrumar a mala com muita
dificuldade (de tanta quinquilharia que comprei na 25 de Março e na Liberdade),
me despedi do Rodrigo e da Martina, os melhores anfitriões possíveis, e saí.
Peguei o táxi, cheguei em Congonhas, fiz check-in, despachei a mala e fui
esperar o embarque no portão 1. Na hora do embarque me atrapalhei porque
confundi a passagem com aquele papel que nos dão quando a gente despacha a
mala. Pedi desculpa para a moça na hora de mostrar a passagem, dizendo que a
classe C ainda não está habituada com esse procedimento. Ela riu e disse “querido, classe C já tá habituada sim.
Classe C é nós!”. Esse “classe C é
nós” me sacudiu, e, quando sentei no meu lugar (poltrona 30A, a última do
avião), olhei pela janela e fiquei emocionado. Era a minha segunda vez em São
Paulo, e eu ainda não havia superado o meu deslumbramento. Sempre sonhei alto,
e a terra da garoa me mostrava novamente que sonhos viram realidade. E o sonho
que realizei nessa segunda viagem não era um sonho qualquer! Era um daqueles virtualmente inatingíveis, e a minha
ficha parecia que jamais iria cair.
O piloto avisou que o tempo em Porto Alegre estava bom... para a
agricultura, porque chovia. “Humor de
piloto”, disse ele. Eu gargalhei alto. E continuei gargalhando enquanto
assistia uma entrevista da Wanda Sykes no programa da Ellen naquele arremedo de
televisão individual que alguns aviões têm. Decolamos, e o voo foi uma hora e
vinte minutos de pura poesia. Eu estava nos céus
figurativamente desde o dia anterior, e agora também estava no sentido literal.
E, em outra ironia do destino, eu, que
me identifico mais do que deveria com a personagem Carly Marshall, do
filme Blue Sky (o segundo Oscar de Jessica, conquistado na edição do ano do meu
nascimento), estava diante do céu mais azul que já vi.
Aterrissamos
em Porto Alegre e o tempo já não estava mais tão bom assim para a agricultura.
Peguei minha mala, entrei em um táxi e, depois de seis dias, voltei para meu
apartamento. Sentei no meu sofá-cama e sorri. Tudo o que eu queria, eu
consegui. Tudo deu certo.
Enquanto
estava aguardando na fila do MIS, não parava de pensar que aquilo era algo
momentâneo. Eu teria aquelas horas para sempre na memória, mas a partir do instante
em que eu botasse o pé para fora do avião aqui no Rio Grande do Sul, voltaria à
rotina e à normalidade do cotidiano. Eu não poderia estar mais equivocado.
A
partir da compra das passagens de avião, eu estava dando início à concretização
de um sonho. Um sonho que sequer passava pela cabeça como passível de se tornar
realidade.
Não
quero ser professoral ou trazer mensagens de autoajuda, quero compartilhar algo
que percebo agora com mais clareza: nós confundimos demais sonhos com planejamentos.
Comprar a casa própria, se formar na faculdade, tirar carteira de motorista,
fazer intercâmbio... isso, mesmo que muitas vezes seja complicado de realizar,
são planos para o futuro. E, quando um planejamento dá certo, nos realizamos
como cidadãos e partimos para um próximo planejamento. Com os sonhos, não é
assim. O sonho envolve vários fatores externos, que muitas vezes definem as
características do que a gente deseja. Eu planejei a viagem para São Paulo
economizando dinheiro e pedindo pouso para meu primo, planejei meus passeios
por lá, planejei minha ida antes do sol raiar para o Museu da Imagem e do Som.
Momentos como interagir com Jessica durante o bate-papo e ser reconhecido por
ela depois, ganhar um autógrafo e, ora, fazer amizades maravilhosas compõem a
parte que não era de minha responsabilidade. Isso tudo é o que compunha o meu
sonho. A minha parte, o planejamento, eu fiz com dedicação. A parte do sonho me
foi concedida por uma conjuntura perfeita de fatos. E é por isso que vejo a
diferença entre planejamento e sonho: quando teu planejamento dá certo, tu
ficas feliz contigo mesmo. Quando um dos teus maiores sonhos se realiza, tu
percebes que aquela chama de esperança, que parecia ter diminuído no fim da
infância, volta a arder dentro de ti. Eu sinto essa chama em mim como nunca
havia sentido antes, e sei que ela jamais se apagará.
A
maioria dos meus planejamentos hoje me parece quase inviáveis a curto e médio
prazo, mas a realização de um sonho te traz de volta a facilidade de sorrir à
toa, e te faz ter certeza de que nada é impossível. Ter essa certeza não
depende apenas da gente, mas também dos outros, e do mundo que cada um
constrói.
Ser
fã de alguém está longe de ser algo idiota: conhecer a vida e a obra do teu
ídolo e te espelhar nele define quem tu és, o que tu intencionas e “o que tu
queres ser quando crescer”. A
experiência de interagir com Jessica Lange não me mostrou apenas que ser fã
dedicado realmente compensa: também fez com que eu voltasse a celebrar a arte,
a alegria, a vida.
A
gente só conhece a verdadeira felicidade quando um sonho se realiza. A
felicidade vem quando tu ouve pela primeira vez a música que vai se tornar a
tua favorita, quando tu vê o teu time ser campeão, quando tu te apaixona por
alguém e percebe a reciprocidade, quando tu conhece alguém que tu te espelha e
te identifica.
Eu
já havia conhecido a felicidade antes, mas não sabia que a intensidade dela não
tem limites. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, um novo mundo se abriu para
mim. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, encontrei dentro de mim o Carlos que
eu tanto queria encontrar. Desde o dia 10 de fevereiro de 2015, eu sou a pessoa
mais feliz do mundo.
Preciso aqui agradecer a algumas pessoas
que foram de suma importância para a realização desse sonho:
- À minha mãe, Margaret Müller, por me
ajudar na compra das passagens e compreender a importância da viagem para mim;
- Ao boss do Série Maníacos Michel Arouca, pelo entusiasmo
sobre o relato e a carta branca para fazer algo tão pessoal;
- Ao Rodrigo Mathias e à Martina Brusius,
que me acolheram e foram os melhores anfitriões possíveis, me deixando
atrapalhar o cotidiano deles durante esses seis dias;
- Ao Bruno Ferreira, pela irreverência e
simpatia contagiantes;
- À Marina Estrella, moça brilhante, que
merece todo o sucesso do mundo com a MAD Alternative Models (e, quando puder
ajudar para atingir esse sucesso, estarei à disposição);
- Ao Gabriel Novaes, que tem o coração
de ouro que todo o bom jornalista precisa ter, e por ter me dado o ótimo
apelido de “Gaúcho”;
- Ao Hermano Henrique (que tem um baita
projeto de mestrado sobre freakshows no Brasil), Paulo Nonato, Fernanda Albuquerque
e a persistente Natália Molico, pela ótima companhia;
- Ao pessoal atencioso do Museu da
Imagem e do Som, desde os seguranças até a “alta cúpula”;
- A vocês, leitores do Série Maníacos,
que acompanharam o meu relato;
- Por último, à Jessica Lange. Por tudo.