segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Não concordo - um conto familiar sobre o horário de verão

Almoço de domingo. O patriarca na ponta da mesa, a matriarca no lugar mais perto da pia. Família conversando, “verdades” sendo ditas por seu Ricardo, como sempre. Seu Ricardo vai falando, sempre muito certo e irredutível, sobre como o horário de verão é uma coisa ótima para todos. Foda-se a economia de luz, o que importa é que o todo mundo gosta do horário de verão. Até o momento da surpresa.
- Não concordo – disse dona Lurdes
Choque geral na mesa. A dona Lurdes não concordando  com alguém, especialmente o marido? Inacreditável.
- Não concorda, é? – perguntou seu Ricardo, fingindo superioridade.
- Não concordo.
- Posso saber o porquê?
- Porque acho chato, ruim.
- Cadum, cadum.
O clima na mesa continuou pesado, mas dona Lurdes não parou.
- Cadum, cadum nada, Ricardo. Tu não quer reconhecer que eu posso estar certa.
- Lurde, te aquieta, tu tá bem fora da casinha hoje. Eu gosto do horário de verão, tu parece que não gosta agora, tudo bem então. Tu não tem que ser contra mim!
- Ah, Ricardo, faz-me o favor! É sempre a mesma palhaçada, grito, e todo mundo que enche a cara deixa a louça para quem não bebe. Mas eu te digo uma coisa, Ricardo, tu não pensa (e aí dona Lurdes se levantou fazendo barulho, para escândalo silencioso de todos à mesa) que eu vou aguentar isso até o final desse horário.
Alguns tentaram intervir, mas foram calados pelo dedo em riste apontado tenebrosamente para cada um, sem um olhar sequer, enquanto dona Lurdes fazia uma avalanche sem fim de “te põe no teu lugar, ô animal”. Seu Ricardo, atônito, olhava para os filhos esperando ajuda, mas ninguém sabia direito o que fazer.
- Quem sabe a gente come sobremesa agora, para acalmar os ânimos.
- Não. Ninguém vai comer a minha sobremesa.
E dona Lurdes levou a travessa de mousse de limão para a sala e chamou só os netos para comer junto com ela.

O horário de verão desconcerta as pessoas, para o mal e para o bem.

sábado, 13 de setembro de 2014

Carlos em Buenos Aires - Dia 4: Cementerio de la Recoleta

Eu tive a oportunidade de conhecer Buenos Aires entre o final de julho e o comecito de agosto. Foi uma das viagens mais repentinas que já fiz, porque recebi o convite da grande Emely pra ir numa segunda-feira, e sexta-feira de noite já estava na rodoviária de Paso de los Libres embarcando para a Big Apple. Claro, nada supera a vez que cheguei de Uruguaiana em casa, e recebi o convite para ir até o Paraná na madrugada seguinte, mas esse não é o ponto.

Bom, eu tive uma experiência magnífica na capital argentina. E, embora ninguém além da minha vó tenha solicitado (a mãe prefere perguntar detalhe por detalhe do que ver um resumão), quero compartilhar o que vi e vivi por lá. E, como autêntico indivíduo com déficit de atenção, que lê jornal de trás pra frente, meu diário começa pelo último ponto turístico que visitei por lá com a Emely. Éramos Thelma & Louise de São Sebastião do Caí, correndo as trança por essa latinoamérica que tanto amamos.

Começando pelo fim, ainda mais por um cemitério, tem sua simbologia pieguíssima. Com vocês, o cemitério de la Recoleta.




O cemitério de la Recoleta é um dos lugares mais inacreditáveis que já coloquei esse pé 44.  Sempre dizem que é um museu a céu aberto, mas é impossível ter ideia da magnitude que isso representa sem se perder lá dentro.



Muitos mausoléus têm apenas grades, o que deixa os caixões expostos. Tu olha ao redor e perde de vista a quantidade de esquifes gastos pela ação do tempo. O que para muitos pode ser amedrontador ou macabro, para mim era carregado de história. Meu único medo lá dentro era derrubar o celular dentro de uma cripta. E havia essa possibilidade.


 Todo mundo que vai procura o mausoléu da Eva Perón, e é lógico que nós fomos atrás. É uma construção esteticamente simplória se comparada a outras lá dentro, mas ainda assim é algo que te derruba um pouco. Ali descansa, depois de muito passeio, o corpo embalsamado de uma das mulheres mais poderosas da história da civilização. Entre as placas metálicas em memória da Evita, a pedra negra do mausoléu, as flores enroscadas na grade...

Cheguei perto para ver o que tinha dentro, colando meu rosto na grade e na porta de vidro por trás, e, em um momento tão poético que chega a ser ridiculamente piegas, o cheiro doce das flores tomou meu nariz. E aí sim eu fiquei bambo, porque ser tomado por aquele aroma naquela circunstância foi indescritível.


O túmulo recém-inaugurado do Raúl Alfonsín, todo branco e com um busto do ex-presidente, também é uma obra muito bonita.

Contudo, os túmulos dos ilustres desconhecidos são os mais deslumbrantes. Não tem como não ficar impressionado com a escultura de uma mãe deitada com o filho bebê em um colchão tão bem-feito que parece ser verdadeiro, por exemplo. Bustos, estátuas de corpo inteiro, retratos, rostos esculpidos nas placas de ferro... nenhum com aquele olhar “estou te julgando” de outros cemitérios. Na Recoleta, parece que sentem orgulho de serem admirados. Mortos soberbos.



Em um ou outro portão de mausoléu, encontrei o bom e velho símbolo da caveira com dois ossos em cruz por trás. Sem dúvida, uma das cerejas no bolo tétrico que é a Recoleta.


Quando saíamos do cemitério, uma senhora poliglota e extremamente simpática apareceu flutuando vestida de noiva e gritando ayuuuuuuuudaaaaaameeeeeeeee vendendo o mapa do local. “Good afternoon! Where are you from?” “Brasil” “Ah, que maravilha!”. Comprei um mapa, e ela prontamente começou a nos explicar por onde deveríamos começar o trajeto lá dentro. Explicamos que já estávamos de salida, e ela, com um sorriso largo, nos desejou boa tarde e um retorno, algum dia. E, sem sombra de dúvida, la Recoleta é um lugar que é necessário retornar e passar um dia inteiro explorando cada tabuleta de mármore.
Ou uma noite. Com uma lanterna, um grupo de amigos, um tango instrumental ao fundo e uma quantidade enorme de empanadas e Fernet com Coca. La Buenos Aires de los muertos é tão majestosa quanto la Buenos Aires de los vivos.



Dica de bons modos: tirar fotos na Recoleta é quase obrigatório. Entretanto, se tu for aparecer nela, toma cuidado com o sorriso que tu vai abrir. É um cemitério, fica chato sorrir demais. 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Quem já foi rainha não perde o fio e a Majestade (ou: Link e a depiladora em crise)

Largou a navalha na pia, para deixá-la de molho na água com sabão neutro. Esperou um pouco, secou de leve a lâmina e colocou-a no forno esterilizador, pois, para uma profissional como ela, higiene é tudo. Até que apareceu um rapaz na porta. “Pois não?”, perguntou Marisa. “Eu precisava de uma depilação, mas não consegui vir no horário de trabalho por causa da aula”, disse o adolescente. Mais um adolescente, pensou Marisa. Ainda assim, ela aceitou depilar o rapaz, porque estava precisando de dinheiro para um programa de extensão em depilação.
O curso de depiladora já era habilitação suficiente, pois hoje em dia é muito raro encontrar um profissional da beleza especializado. Entretanto, Marisa queria um diferencial, o mesmo que a destacava quando era mais moça e era excelente em jogos de videogame, sendo conhecida (um pouco pejorativamente) de Rainha do Joystick. Ela queria ser reconhecida por sua excelência em alguma coisa também na fase adulta, queria ser lembrada pelos clientes e concorrentes como “Marisa, a depiladora alguma coisa”. Depois de várias pesquisas sobre tipos diferentes de depilação, ela encontrou uma forma absolutamente trivial, mas extremamente ousada: depilação à lâmina. Ela chegou a passar duas semanas nos Estados Unidos para dominar a prática, em um curso patrocinado não-oficialmente pela Procter & Gamble.
Claro que os homens ficavam extremamente apavorados. Apesar da necessidade da ereção para fazer a depilação, os homens broxavam só de ver uma lâmina de navalha chegando perto da virilha. Ela, sem inibições, pedia para os clientes pensarem em alguma coisa excitante, e até disponibilizava algumas revistas eróticas, e, entre Playboys e G Magazines, Marisa conseguia terminar o serviço.
Infelizmente, Marisa estava cada vez mais ficando sem clientes, perdendo para Veets e ceras quentes. Por isso precisava fazer programa de extensão, e por isso precisava depilar o rapaz. Além do mais, depilar adolescentes meio tarados a fazia lembrar dos tempos de juventude, nos quais transava com todo mundo e jogava jogos da Nintendo, muitas vezes ao mesmo tempo (o que muito ajudou a estabelecer a alcunha dúbia de Rainha do Joystick,)
O jovem cliente fora de hora era como todos os outros da idade: já vinha excitado sem saber que precisava, ficava envergonhado de ficar deitado no colchonete vestindo apenas a camiseta de uma banda punk, e perdia completamente a tara após ver o brilho da lâmina. Marisa achou apropriado emprestar ao rapaz um hentai, aqueles mangás eróticos, porque era o que mais excitava jovens que nem ele. E dito e feito. Ela passou o creme para a lâmina deslizar melhor, e começou o trabalho. Ela passava a navalha delicadamente no pênis do rapaz, puxando um pouco a pele para tirar uns pelos mais difíceis, quando o rapaz deu um pulo, parecido com uma convulsão, e Marisa acabou deixando a navalha escapar da mão.
O corte era ínfimo, apenas um susto, mas o urro do adolescente fez Marisa pensar que tinha castrado o coitado. Logo que o susto passou, e um pouco de sangue escorreu, esclareceu-se a situação: o rapaz havia ejaculado por conta da carícia nada sexual que Marisa havia feito. O rapaz xingou Marisa com todos os palavrões possíveis, Marisa deu um tapa na cara do rapaz berrando que “não sou prostituta, pirralho punheteiro!”. Mas esse era o risco que se corria por depilar um adolescente de pau duro com uma porra de uma navalha, puta que pariu.
O rapaz pediu para ficar sentado no colchonete por um tempo, até que a dor passasse. “Qual o teu nome?”, perguntou Marisa. “Pode me chamar de Link.”, disse. “Que nem o personagem do jogo Zelda?”. Link ficou assombrado de ver que a depiladora conhecia o jogo. “Não me olhe com essa cara, moleque! Eu não sou tão velha, já joguei muito Zelda na minha adolescência!”, disse Marisa. Link, sério, olhou para Marisa e disse “sabe, dona Marisa” “dona, não” “sabe, Marisa, isso me poupa muitas explicações. Estou muito feliz de ver que a senhora” “senhora, não” “você conhece sobre os problemas do reino de Hyrule”. Hyrule?, pensou Marisa. Ah, o reino onde se passa os jogos de Zelda. A depiladora ficou prestando atenção no tom sério do rapaz. “Sua fama chegou até nós. Fama de ser manusear de forma habilidosa a navalha. Precisamos de sua ajuda no reino de Hyrule”. Marisa, apesar de confusa e rindo por dentro, disse para o rapaz que queria personificar Link continuar. “A ocarina do tempo, um instrumento vital para mim e para a princesa, foi roubada por capangas de um mestre que não conheço. Para atravessar a floresta que circunda o castelo onde repousa a ocarina, precisamos dos especialistas, de qualquer data e qualquer lugar, nas artes de domínio de objetos cortantes. A senhora, dona Marisa” “senhora, não, nem dona” “você, Marisa, é a pessoa mais hábil com a navalha que já conheci”. Algo em Marisa queria bater no moleque idiota, mas ela se levou pela brincadeira. “Mas faz pouco que eu te cortei”, disse a depiladora. “Me cortou porque eu cedi sexualmente, e intencionalmente. Não queremos pessoas infalíveis, queremos os melhores humanos”, disse Link.
De repente, a sala toda brilhou em verde, um portal resplandecia na parede, e do outro lado, o reino de Hyrule. E o jovem punheteiro estava, do nada, vestido com trajes verdes e um barrete na cabeça. “Vamos, don... Marisa. Nos ajude a resgatar a ocarina do tempo”. Marisa estava em dúvida se acreditava no que via. Era uma mulher madura, e, portanto, pessimista, e estava receosa em entrar no portal. Lembrou dos tempos de vício no jogo Zelda, dos tempos de Rainha do Joystick, mas será que uma mulher adulta deveria arriscar em uma tolice que poderia nem ser verdade? O tempo para dúvidas estava acabando, e Link já estava aguardando-a impaciente para cruzar o portal e supostamente chegar em Hyrule. “Você vem ou não, Marisa? Nosso reino precisa de você”. Mas e o trabalho, e as dívidas, e o curso?

Grandes merda, pensou Marisa. Ninguém marcou horário para amanhã mesmo.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Marcelo e a professora

“Grmghrl”, pensava Marcelo, a caminho de uma dessas aulas que os alunos brincam de serem profissionais formados. Aquele dia da semana era sempre um temor para ele.
Marcelo era do texto, preferindo se expor através da escrita do que pela imagem ou pela voz. Por isso, não se sentia tão desconfortável com o corpo de violoncelo ou com a dicção de Patolino. Naqueles dias de aula, entretanto, ele até se prestava a baixar com água os chifres que o cabelo despenteado fazia, porque ele poderia ser fotografado, filmado, pintado, mimeografado. “Grmghrl”.
A professora, perto dos trinta anos, era bonita e boa gente, daquelas que entendem a necessidade de usar palavrões para ilustrar histórias e atrair o foco de quase metade da turma – a metade que, lógico, não estava mexendo no celular.

*

Querendo ou não, os exercícios e apresentações não se fariam sozinhos. A bolsa poderia escapar caso decidisse não dar bola para a desgraça de cadeira, então Marcelo pensou na mestra Ines Brasil e começou a pensar, muitas vezes em voz alta, “vambora fazendo. Porque Deus disse ‘faça por onde que eu te ajudarei’, então vambora fazendo”. E assim ele foi levando a matéria, prestando atenção mais pelo jeito camarada da professora do que pela vontade de aprender. Até que um dia, durante uma discussão sobre um tema maçante, Marcelo reparou no pescoço da professora. Pescoço carnudo, roliço. Logo ele, que nunca foi um daqueles tarados por partes específicas do corpo, imaginou-se beijando, massageando, mordendo de leve, mordendo com força aquele pescoço.
Pela primeira vez na vida, depois da aula Marcelo conversou com os amigos sobre mulheres. Aquela mulher daquele pescoço, especificamente.

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Marcelo sempre foi péssimo na hora de lidar com relacionamentos amorosos. Péssimo mesmo, ao ponto mais certeiro e ridículo da palavra. Nunca entendeu as circunstâncias de seu primeiro beijo, nunca entendeu as circunstâncias de seu namoro relativamente longo e turbulento. E nem sabe direito como fez para terminá-lo. Então a pergunta martelava: como é que se dá o primeiro passo? O que se diz, como se diz, quando se diz? E o pior, como se faz tudo isso quando se trata de uma professora? E ele ainda tinha a desconfiança de que ela fosse lésbica, então qualquer investida poderia se provar infrutífera.

*

Atrair a atenção da professora era a meta de Marcelo. Ser aluno exemplar era quase impossível devido às limitações físicas e sociais que, a tal altura do curso, já definia o que ele tinha talento ou não. Não queria pedir muita ajuda para não parecer burro, não queria exibir conhecimentos para não fazer papel de idiota.
E, junto com uma pesquisa profunda a respeito da professora em qualquer canto possível da internet, tentou fazer um aluno sob medida para ela. Roupa escura para parecer mais magro e sério, boa postura, isqueiro disponível, livro do Gabo debaixo do braço. E, obviamente, dedicação à aula.

*

“Caralho, tu te puxou nesse trabalho”. A frase não foi dita assim pela professora, mas Marcelo entendeu assim. E era verdade. A língua presa não foi empecilho, e ele deixou de sentir-se como o Romário. Olhou-se no reflexo do vidro quebrado do celular e viu Sarah Paulson, que tem o mesmo problema, mas tira proveito disso. “Vamo que vamo, Marcelo”, disse para próprio incentivo. Na verdade saiu “Marfelo”, mas isso nem importava mais.

*

Era quase dez e meia, e só estavam na aula Marcelo, imprimindo o trabalho que todo mundo tinha terminado muito antes, e a professora no celular.
- Professora, desculpa por ter demorado tanto, eu me empolguei e não vi o tempo passar.
- Sem problemas, já perdi o ônibus, agora só daqui a vinte minutos.
- Puta merda, sora, desculpa mesmo.
- Eu recebo pra isso, Marcelo. Realmente acho justo que levem o tempo que precise.
- Olha, um professor já me botou pressão para sair logo porque ele precisava fumar. Tu é boa gente, sora.
- Ah, querido, que é isso.
“Querido”, ela disse, e Marcelo ouviu muito bem. Esse “querido” foi um turbilhão de coragem dentro dele, a deixa para se livrar de um sentimento pesado, estranho. Era naquele momento ou nunca mais, e ele sabia que, confessando ou guardando para si, se arrependeria de qualquer forma.
- Professora, eu gosto muito de ti.
- Obrigado, querido, eu também.
- Eu gosto mais do que eu deveria, professora.
Ela inclinou a cabeça para o lado, mexendo o pescoço de leve. Minha nossa, que delícia de pescoço. Minha nossa, que porra eu tô fazendo?
- Como assim?
- Desculpa, eu não sei direito como dizer, eu nunca soube, sempre fui introvertido, mas tu me atrai muito, desculpa. Tu é inteligente, divertida, linda, e eu... desculpa, mas...
Ela suspirou, como quem engole um “e lá vamos nós de novo”.
- Tá, olha só...
- Professora, me desculpa, eu sei que eu não devia te dizer isso, mas me parecia necessário, foi um lapso, desculpa, só que...
- Eu quero falar, Marcelo. Ok? Bom, deixa te explicar uma coisa: quando tu é uma mulher nova, desculpa pela falta de modéstia, mas querida, receptiva, e de certa forma em posição de poder...
- Os homens ao redor tendem a pensar errado sobre as atitudes dessa mulher, acham que ela pode estar dando em cima, compreendo. Mas comigo não é isso, eu tô fascinado e sei que não deveria te contar, mas eu nunca, nunca, nunca quis te assediar, eu...
- Puta que pariu, eu ainda quero falar, Marcelo. E sim, com certeza tá longe de ser assédio, eu sei muito bem o que é assédio.
- Desculpa mesmo, não sei o que me deu.
- Não precisa pedir tantas desculpas.
- Tu ao menos reconhece meu esforço, não é?
- Eu fico lisonjeada. Mas não, Marcelo. Sinto muito.
Os dois sorriram para o outro por um tempo – ele por nervosismo, ela não se sabe o porquê. Então, Marcelo disse “bom, boa noite, sora”, retribuído com um enfático “boa noite, Marcelo”.

*

Marcelo nunca sentiu tanta vergonha na vida. E mandou um e-mail para a professora poucos dias depois, desculpando-se pela conversa. Pensou em várias desculpas, que envolviam desde uma mistura muito errada de remédios e caipirinha de cachaça, mas ficou com a que mais tinha fundo de verdade: “Realmente confundi as coisas, embora involuntariamente. Minha admiração por ti me fez enxergar tudo de forma um pouco nebulosa, mas espero que tu compreenda”. E aí discorreu rapidamente sobre a solidão de estar sozinho na cidade grande, etc. Levemente dramático para causar simpatia e um pouco de pena, o sentimento favorito de Marcelo. Vinte minutos depois, chegou a resposta. “Relaxa, Marcelo. Isso já aconteceu, nem te estressa. Importante é manter o respeito, e tu foi respeitoso comigo. Abs”.

*

Abs. Isso esclareceu tudo para Marcelo. Com a professora, seria abs e não bjs. Não apenas porque ele não tinha uma mísera chance de relacionamento, mas porque ela era uma amiga em potencial para o futuro. Uma profissional genial, apaixonada pelo que faz. Ela era gente para tomar chope depois de um dia de trabalho, e fazer debates levemente alcoolizados sobre os rumos da profissão e a falta de dinheiro latente. Apenas abs. Ou melhor, talvez seria abs e bjs, mas bjs na bochecha.

*

Apesar do esclarecimento, a dúvida sobre algo que a professora tinha dito na conversa persistia. “Eu sei muito bem o que é assédio”. Porra, mulher se fode demais quando tenta se projetar. Injustiça vergonhosa.

*

Na aula seguinte, apesar da aflição, não houve nenhuma situação embaraçosa. A professora estava bem-humorada, e o rosto de Marcelo não caiu de vergonha como esperava. E o semestre passou muito bem, com notas razoáveis nos trabalhos e bons debates após o término das aulas entre a professora, Marcelo e uns amigos, aqueles que não tinham voado para pegar ônibus ou olhar o jogo do Grêmio (ou era do Inter?).

*

O último dia de aula tinha uns dez, doze alunos. A professora contou deliciosos e polêmicos casos de bastidores profissionais, infelizmente sem nomear os envolvidos. “Dá nome aos bois, sora!”, pediu Marcelo. “Nem morta feat. enterrada feat. Nicki Minaj”, ela respondeu.
Uns arrumando a mochila, outros já correndo para tomar um porre de inauguração das férias na Cidade Baixa. Marcelo foi até a mesa da professora, que provavelmente também estava ansiosa para tomar um porre, e disse:
- Foi um prazer ter aula contigo, sora.
Ela respondeu, sorrindo:
- Foi um prazer ser tua professora, Marcelo.

E os dois trocaram beijos na bochecha, simples beijos. Mas Marcelo sentiu que havia algo diferente. O beijo era um pouco molhado, e não só por causa do batom. Propositalmente úmido. E, com isso, ele ganhou o semestre.

terça-feira, 18 de março de 2014

Maude - pequenos exercícios de narrativa

Maude foi até a confeitaria da esquina para comprar croissants, ignorando a ordem médica de ficar longe de amido, glúten, açúcar, gorduras e comida saborosa. Pediu vários croissants, cada um de sabor diferente, e sentou-se em um banquinho do lado de dentro do recinto, temendo ser reconhecida por alguém na rua. Escondida do movimento popular nas calçadas, Maude se deliciava com os recheios grudentos e açucarados, comendo-os em poucas mordidas e um atrás do outro, assistindo um noticiário qualquer na televisão que estava sobre balcão. Entretanto, logo após comer em segundos o croissant de goiabada e já ter o de maçã e canela em mãos, Maude levou as mãos ao peito e caiu no chão. O confeiteiro correu para auxiliá-la, levantando-a com típica facilidade de um musculoso como ele, mas ouviu da apavorada Maude o pedido de silêncio, para levá-la a um táxi em absoluta discrição, e acompanhá-la na corrida ao pronto-socorro. Sem sequer tirar o avental, o confeiteiro pediu para seu marido cuidar do estabelecimento, fez sinal para um táxi por sorte vazio, e ajudou a senhora a entrar, para sentar-se ao lado dela no banco de trás. O taxista mal-encarado perguntou para onde iriam, e o confeiteiro disse, num tom grave e afetadíssimo, pra voar até o hospital.

-

Fiquei só olhando para trás, pelo retrovisor. Estranhei muito quando aquela velha carcomida e aquela bicha pediram para entrar no meu táxi, e estranhei mais ainda quando ele me pediu para ir até o pronto-socorro, porque aquele caco velho estava passando mal. Liguei o rádio, para tentar afastar minhas dúvidas, quando o radialista comentou que a Elizabeth Taylor tinha morrido. Aí que fiquei chocado. Não com a morte da Elizabeth Taylor, aquela já estava muito mais pra lá do que pra cá, mas com a conclusão lógica da história do viadinho e da múmia no banco de trás: parecido com a história da vida da Taylor, a velha estava morrendo, e o afetado devia ser o marido dela, só esperando ela morrer para pegar todo dinheiro da defunta e fugir para chiar e dar o rabo na França, aquele país onde todo mundo chia e dá o rabo. Claro que pensei em chegar no hospital e, depois de encaminhar a velha na emergência, arrebentar o boiola a paulada. Mas aí pensei o lógico, né? Se eu falar alguma coisa para o puto, é capaz de ele me matar, ou pior, me comer o cu, olha o tamanho dele. Larguei os dois, recebi uma nota de cinquenta da velha e me fui embora rápido, sem dar o troco. Ora, o viado vai nadar no dinheiro agora, o troco não vai fazer falta.

-

- O que houve com a dona Maude?
- Ela estava comendo croissants na minha confeitaria, quando desmaiou.
- Ora, dona Maude! Eu lhe proibi de comer croissants e comidas tão calóricas! O que deu na senhora?
- Não foi do croissant, doutor. Não foi não.
- Claro que foi, dona Maude. Assim a senhora quer se matar de infarto e me matar de susto!
- Ora, não foi do croissant, eu disse! Foi coisa pior.
- O que foi, dona? Tinha algo no meu croissant?
- Não.
- Então?
- A Elizabeth Taylor morreu! O que será de mim agora?
- Não entendi, dona Maude. O que tem isso a ver?
- Doutor, ela me apresentou o croissant quando era faxineira. Eu tinha um trato de jogar fora todos os vidrinhos de remédios dela no set de Cleópatra, e ela me dava croissants em troca! Ela me apresentou uma alegria que eu nunca tinha sentido, eu vou comer croissants até morrer!
- Dona Maude, a senhora está proibida de comer croissants. Rapaz, por favor, leve dona Maude para casa, e fale para a filha dela que ela está proibida de comer alimentos muito pesados.
- Sim, mas vamos de ônibus. Os taxistas daqui são muito mal-educados.
- Rapaz?
- Oi, dona.
- Tenho um pedido.
- Chega de croissants, não venderei mais para a senhora!
- Ah, não é isso. É outra coisa.
- O que é?
- Casa comigo?