quarta-feira, 23 de abril de 2014

Marcelo e a professora

“Grmghrl”, pensava Marcelo, a caminho de uma dessas aulas que os alunos brincam de serem profissionais formados. Aquele dia da semana era sempre um temor para ele.
Marcelo era do texto, preferindo se expor através da escrita do que pela imagem ou pela voz. Por isso, não se sentia tão desconfortável com o corpo de violoncelo ou com a dicção de Patolino. Naqueles dias de aula, entretanto, ele até se prestava a baixar com água os chifres que o cabelo despenteado fazia, porque ele poderia ser fotografado, filmado, pintado, mimeografado. “Grmghrl”.
A professora, perto dos trinta anos, era bonita e boa gente, daquelas que entendem a necessidade de usar palavrões para ilustrar histórias e atrair o foco de quase metade da turma – a metade que, lógico, não estava mexendo no celular.

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Querendo ou não, os exercícios e apresentações não se fariam sozinhos. A bolsa poderia escapar caso decidisse não dar bola para a desgraça de cadeira, então Marcelo pensou na mestra Ines Brasil e começou a pensar, muitas vezes em voz alta, “vambora fazendo. Porque Deus disse ‘faça por onde que eu te ajudarei’, então vambora fazendo”. E assim ele foi levando a matéria, prestando atenção mais pelo jeito camarada da professora do que pela vontade de aprender. Até que um dia, durante uma discussão sobre um tema maçante, Marcelo reparou no pescoço da professora. Pescoço carnudo, roliço. Logo ele, que nunca foi um daqueles tarados por partes específicas do corpo, imaginou-se beijando, massageando, mordendo de leve, mordendo com força aquele pescoço.
Pela primeira vez na vida, depois da aula Marcelo conversou com os amigos sobre mulheres. Aquela mulher daquele pescoço, especificamente.

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Marcelo sempre foi péssimo na hora de lidar com relacionamentos amorosos. Péssimo mesmo, ao ponto mais certeiro e ridículo da palavra. Nunca entendeu as circunstâncias de seu primeiro beijo, nunca entendeu as circunstâncias de seu namoro relativamente longo e turbulento. E nem sabe direito como fez para terminá-lo. Então a pergunta martelava: como é que se dá o primeiro passo? O que se diz, como se diz, quando se diz? E o pior, como se faz tudo isso quando se trata de uma professora? E ele ainda tinha a desconfiança de que ela fosse lésbica, então qualquer investida poderia se provar infrutífera.

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Atrair a atenção da professora era a meta de Marcelo. Ser aluno exemplar era quase impossível devido às limitações físicas e sociais que, a tal altura do curso, já definia o que ele tinha talento ou não. Não queria pedir muita ajuda para não parecer burro, não queria exibir conhecimentos para não fazer papel de idiota.
E, junto com uma pesquisa profunda a respeito da professora em qualquer canto possível da internet, tentou fazer um aluno sob medida para ela. Roupa escura para parecer mais magro e sério, boa postura, isqueiro disponível, livro do Gabo debaixo do braço. E, obviamente, dedicação à aula.

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“Caralho, tu te puxou nesse trabalho”. A frase não foi dita assim pela professora, mas Marcelo entendeu assim. E era verdade. A língua presa não foi empecilho, e ele deixou de sentir-se como o Romário. Olhou-se no reflexo do vidro quebrado do celular e viu Sarah Paulson, que tem o mesmo problema, mas tira proveito disso. “Vamo que vamo, Marcelo”, disse para próprio incentivo. Na verdade saiu “Marfelo”, mas isso nem importava mais.

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Era quase dez e meia, e só estavam na aula Marcelo, imprimindo o trabalho que todo mundo tinha terminado muito antes, e a professora no celular.
- Professora, desculpa por ter demorado tanto, eu me empolguei e não vi o tempo passar.
- Sem problemas, já perdi o ônibus, agora só daqui a vinte minutos.
- Puta merda, sora, desculpa mesmo.
- Eu recebo pra isso, Marcelo. Realmente acho justo que levem o tempo que precise.
- Olha, um professor já me botou pressão para sair logo porque ele precisava fumar. Tu é boa gente, sora.
- Ah, querido, que é isso.
“Querido”, ela disse, e Marcelo ouviu muito bem. Esse “querido” foi um turbilhão de coragem dentro dele, a deixa para se livrar de um sentimento pesado, estranho. Era naquele momento ou nunca mais, e ele sabia que, confessando ou guardando para si, se arrependeria de qualquer forma.
- Professora, eu gosto muito de ti.
- Obrigado, querido, eu também.
- Eu gosto mais do que eu deveria, professora.
Ela inclinou a cabeça para o lado, mexendo o pescoço de leve. Minha nossa, que delícia de pescoço. Minha nossa, que porra eu tô fazendo?
- Como assim?
- Desculpa, eu não sei direito como dizer, eu nunca soube, sempre fui introvertido, mas tu me atrai muito, desculpa. Tu é inteligente, divertida, linda, e eu... desculpa, mas...
Ela suspirou, como quem engole um “e lá vamos nós de novo”.
- Tá, olha só...
- Professora, me desculpa, eu sei que eu não devia te dizer isso, mas me parecia necessário, foi um lapso, desculpa, só que...
- Eu quero falar, Marcelo. Ok? Bom, deixa te explicar uma coisa: quando tu é uma mulher nova, desculpa pela falta de modéstia, mas querida, receptiva, e de certa forma em posição de poder...
- Os homens ao redor tendem a pensar errado sobre as atitudes dessa mulher, acham que ela pode estar dando em cima, compreendo. Mas comigo não é isso, eu tô fascinado e sei que não deveria te contar, mas eu nunca, nunca, nunca quis te assediar, eu...
- Puta que pariu, eu ainda quero falar, Marcelo. E sim, com certeza tá longe de ser assédio, eu sei muito bem o que é assédio.
- Desculpa mesmo, não sei o que me deu.
- Não precisa pedir tantas desculpas.
- Tu ao menos reconhece meu esforço, não é?
- Eu fico lisonjeada. Mas não, Marcelo. Sinto muito.
Os dois sorriram para o outro por um tempo – ele por nervosismo, ela não se sabe o porquê. Então, Marcelo disse “bom, boa noite, sora”, retribuído com um enfático “boa noite, Marcelo”.

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Marcelo nunca sentiu tanta vergonha na vida. E mandou um e-mail para a professora poucos dias depois, desculpando-se pela conversa. Pensou em várias desculpas, que envolviam desde uma mistura muito errada de remédios e caipirinha de cachaça, mas ficou com a que mais tinha fundo de verdade: “Realmente confundi as coisas, embora involuntariamente. Minha admiração por ti me fez enxergar tudo de forma um pouco nebulosa, mas espero que tu compreenda”. E aí discorreu rapidamente sobre a solidão de estar sozinho na cidade grande, etc. Levemente dramático para causar simpatia e um pouco de pena, o sentimento favorito de Marcelo. Vinte minutos depois, chegou a resposta. “Relaxa, Marcelo. Isso já aconteceu, nem te estressa. Importante é manter o respeito, e tu foi respeitoso comigo. Abs”.

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Abs. Isso esclareceu tudo para Marcelo. Com a professora, seria abs e não bjs. Não apenas porque ele não tinha uma mísera chance de relacionamento, mas porque ela era uma amiga em potencial para o futuro. Uma profissional genial, apaixonada pelo que faz. Ela era gente para tomar chope depois de um dia de trabalho, e fazer debates levemente alcoolizados sobre os rumos da profissão e a falta de dinheiro latente. Apenas abs. Ou melhor, talvez seria abs e bjs, mas bjs na bochecha.

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Apesar do esclarecimento, a dúvida sobre algo que a professora tinha dito na conversa persistia. “Eu sei muito bem o que é assédio”. Porra, mulher se fode demais quando tenta se projetar. Injustiça vergonhosa.

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Na aula seguinte, apesar da aflição, não houve nenhuma situação embaraçosa. A professora estava bem-humorada, e o rosto de Marcelo não caiu de vergonha como esperava. E o semestre passou muito bem, com notas razoáveis nos trabalhos e bons debates após o término das aulas entre a professora, Marcelo e uns amigos, aqueles que não tinham voado para pegar ônibus ou olhar o jogo do Grêmio (ou era do Inter?).

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O último dia de aula tinha uns dez, doze alunos. A professora contou deliciosos e polêmicos casos de bastidores profissionais, infelizmente sem nomear os envolvidos. “Dá nome aos bois, sora!”, pediu Marcelo. “Nem morta feat. enterrada feat. Nicki Minaj”, ela respondeu.
Uns arrumando a mochila, outros já correndo para tomar um porre de inauguração das férias na Cidade Baixa. Marcelo foi até a mesa da professora, que provavelmente também estava ansiosa para tomar um porre, e disse:
- Foi um prazer ter aula contigo, sora.
Ela respondeu, sorrindo:
- Foi um prazer ser tua professora, Marcelo.

E os dois trocaram beijos na bochecha, simples beijos. Mas Marcelo sentiu que havia algo diferente. O beijo era um pouco molhado, e não só por causa do batom. Propositalmente úmido. E, com isso, ele ganhou o semestre.